segunda-feira, 30 de março de 2009

EU PODERIA SER O CHICO

Quando minha namorada fala do Chico Buarque, costumo lembrar de duas pessoas: Ernest Hemingway e Eduardo Barreto. Hemingway diz que, se você quer que sua mulher tenha de você a imagem de um homem corajoso, nunca a leve para ver uma tourada. Depois que ela vê o desempenho do toureiro, passa a achar que aquilo é que é macho, o resto é conversa. E o artista gráfico Eduardo Barreto é um dos muitos homens da minha geração que, desde os primeiros anos da década de 60, vem tentando achar um defeito de caráter, uma picaretagem, uma doença grave, seja lá o que for - enfim, alguma coisa ruim no Chico Buarque, para que sobre algum espaço para nós, na admiração de nossas mulheres. “Ninguém pode ser tão maravilhoso assim - dizia Eduardo -, compor assim, escrever assim, ter aqueles olhos, estar casado com uma mulher como a Marieta Severo...aí tem coisa”. De vez em quando Eduardo nos puxava para um canto: “Parece que a coisa agora é séria. O Chico está com um tumor no cérebro”. Vã esperança. Mesmo agora, depois de anunciada a separação de Chico e Marieta, o casal, que tinha um casamento invejado, passou a ter uma separação invejadíssima...
O Caetano Veloso é outro que, embora de forma disfarçada, está tentando achar defeito no Chico. Pode ver, no trecho do livro dele, no anúncio que a Companhia das Letras vem publicando em jornais e revistas. Caetano lembra que ele e Chico ficaram nacionalmente conhecidos e começaram a enriquecer ao competir no “Esta Noite se Improvisa”, da velha TV Record. No programa, a produção dava uma palavra, e ganhava pontos quem lembrasse primeiro uma música cuja letra contivesse aquela palavra. Caetano era um concorrente poderoso, mas Chico era melhor. Pois Caetano diz que Chico só ganhava dele porque, muitas vezes, compunha músicas na hora - o que era proibido pela produção, pois não era um concurso de repentistas, e sim de memória musical. Pura inveja, evidentemente - e perfeitamente compreensível, mesmo num compositor genial como Caetano. O conhecido incidente no Florentino, em que Chico deu uma valente cusparada em Millôr Fernandes, começou, para quem não se lembra, com a infeliz frase de Millôr, publicada nos jornais da época: “Não confio em Chico Buarque nem para tomar conta do meu cachorro”...
A inveja do Caetano, como se vê, é disfarçada, ressentida, vem num aparente elogio à capacidade de improvisação de Chico. A de Millôr apareceu raivosa, direta. Despretensiosamente, quero dizer que acho que os entendo.
Talvez se eu falar da minha inveja fique mais claro.
Morro de inveja do Caetano. Lembro-me, por exemplo, de quando ouvi pela primeira vez o disco de Londres, com “Maria Bethania” e “London, London”. Ao lado da emoção cívica e da impotente dor política que o exílio de Gil e Caetano nos causavam, e da admiração pela explosão da nova etapa do talento de Caetano, morri de inveja dele. Já tive muita vontade de ser cantor e compositor, tenho minhas musiquinhas, adoro cantar. Meu sucesso já chegou a ultrapassar as fronteiras domésticas, e me recordo perfeitamente que duas pessoas - um vizinho e uma vizinha - me elogiaram. Mas estou longe de ser até mesmo, digamos, um Martinho da Vila. Caetano, então, nem pensar...
Tenho também um inveja assumidíssima do Millôr. Da erudição, da criatividade, da genialidade do Millôr. Inveja que começou na minha infância, com o Pif-Paf, em “O Cruzeiro” - “cada número é exemplar, cada exemplar é um número”. Eu lia, adorava, e quantas vezes, lembrando das frases de Millôr no meio das aulas, tinha de me conter, para não ter de explicar aos professores do que estava rindo - por exemplo: “alguns ficam na cama porque estão doentes; outros, porque se sentem muito bem”. Adolescente, tinha a fantasia de escrever coisas brilhantes como as do Millôr. Tenho aqui minhas tiradas, tão bem sucedidas quanto as minhas músicas, em casa e nas vizinhanças. Mas já sei que nunca vou escrever nem sequer como o Carlos Heitor Cony - quanto mais o Millôr Fernandes...
Muitas vezes, depois de ouvirmos o Caetano, falo da minha inveja. Minha namorada diz que cada um tem suas qualidades. Por exemplo, eu sou muito mais modesto que o Caetano, segundo ela. E a modéstia é uma qualidade importante. Quando falo da minha inveja do Millôr, ela diz que eu sou mais bonito do que ele. Não digo que não seja bom ouvir isso, mas sempre tenho uma sensação de estar sendo enganado.
Mas nunca tive inveja do Chico. Quanto ao Chico, sou tomado por um sentimento muito diferente da inveja. Nunca pensei em compor como o Chico, nem em ser bonito como o Chico, nem em escrever como o Chico.
Na verdade, eu queria mesmo é ser o Chico. É isso aí. Em vez de o Chico Buarque nascer, eu teria nascido, no lugar dele, e eu seria ele, inclusive com o nome dele, tudo direitinho. E se ele quisesse nascer também, podia nascer no meu lugar, e ele seria eu, é claro. Problema dele.Quando falo disso para a minha namorada, ela me olha com um olhar pensativo. Acho que ela me entende, pois não diz nada, nada. Fica quietinha.

4 comentários:

  1. Esse texto era um que escreveu na Caros Amigos?
    Procurei tanto o exemplar por causa dele...


    beijo pra você.
    e adorei te ver naquele dia.
    amanda baccili

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  2. Também adorei, querida.
    e o texto é esse mesmo. Eu gostaria de escrever com mais frequencia, mas tenho andado meio sonolento... são os antibióticos, viu? A idada não pesa tanto!
    beijos

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  3. Eu ia justamente perguntar se esse era o texto da Caros Amigos!

    Tu acreditarias se eu dissesse que cheguei aqui porque li esse texto anos atrás, acho que fazia o segundo ano, então deve ter sido em meados de 99... Incrível, não é? Enfim, achei genial, perdi a revista, e por alguma razão hoje procurei no google — eu invejo caetano inveja chico — o que eu lembrava do texto original e este foi o primeiro resultado!

    Parabéns pelo ótimo ensaio! Parece melhor hoje que da primeira vez que li! Tive que escrever até um post em meu blog (não se sinta obrigado a visitar ou comentar) http://oqed.blogspot.com/

    Engraçado que lembro de ter lido outros textos de tua autoria, gostei, mas nunca poderia imaginar que eras o mesmo autor! Abraço! Tudo de bom!

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  4. Ruy,
    Gosto muito de seu texto e sou fanatica pelo Millor, seria interessante fazer uma enquete...
    Quem leu Estorvo?
    Gostou? conseguiu ler até o fim?
    E o que me diz de Budapest?

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