Desde criança eu queria ser pai. De muitos filhos. Admirava famílias grandes, casas cheias de quartos com quatro beliches cada, monte de gente falando na hora do jantar, bandejas correndo de mão em mão pela mesa imensa. Olhava para cada menina como uma potencial mãe dos meus filhos.
Depois descobri o sexo, atividade que sempre me deu muito prazer, e centrei-me nesse prazer. Nada podia ser melhor do que fazer sexo, sobretudo com a mulher por quem eu estivesse apaixonado. Era tão bom que desviava minha atenção do fato de que todo aquele prazer era exatamente o que fazia com que homens e mulheres se tornassem pais e mães. Até que minha namorada ficou grávida. E a relação entre um e outro desejo se estabeleceu com uma clareza contundente!
Grana pouca, 23 anos eu e ela 22. Em nenhum momento duvidamos de que a notícia era maravilhosa e casamos praticamente sem pensar, em abril de 1967. No dia do casamento, três meses de gravidez, o vestido dela, na altura dos seios, apresentava pinguinhos de leite. Foi para mim um bom sinal. Certamente teríamos uma substanciosa família, grande, feliz e bem alimentada. Paramos em dois casais de filhos (por ordem cronológica Juliana, Saulo, André e Carolina, respectivamente atriz, psicólogo, advogado e psicóloga), nascidos de dois em dois anos, em média. Não era a família grandona que eu imaginara antes, mas estava de bom tamanho para os tempos que corriam.
Nunca nos sentimos preparados para a paternidade ou para a vida (ainda não me sinto, e apesar de carreiras bem sucedidas no jornalismo, no direito e na psicologia, às vezes penso que minha verdadeira vocação seria tocar harpa paraguaia e cantar guarânias em bares noturnos pesadamente boêmios). Entre culpas, medos e alegrias (com predomínio absoluto das alegrias), porém, acho que me saí razoavelmente bem.
No fundo, ninguém ensina ninguém a ser pai. Aprendizado de pai é transferência, com saltos de qualidade, de uma situação para outra.Vamos aprendendo aos poucos, com a experiência, quando pensamos e repensamos a experiência. E imitamos, mesmo sem querer, a referência de pai que tivemos. Olhando pra trás, vejo quanto imitei o meu pai, de quem de cara herdei o nome, Ruy, e de quem recebi, mais que tudo, um afeto sem limites.
De escola meu pai só teve o primeiro ano primário. Paulista de Jaú, filho de colono de fazenda, cresceu sendo peão para tudo, lavrador, cozinheiro, mecânico, motorista, marceneiro e lenhador, serrando troncos, produzindo e carregando dormentes para a construção da ferrovia Araraquarense. À noite, à luz de velas, aprendia solitariamente em quartos de pensão, lendo livros de matemática, português (o velho e excelente Dicionário de Cândido de Figueiredo, encadernado por meu pai, até hoje está comigo) e inglês (“O Inglês Tal Qual se Fala no Presente, Sem Auxílio de Professor”, que também herdei). Aprendeu tudo sobre café e foi, já jovem, ser provador e classificador, e mais tarde, final da década de 40, casado e com três filhos, gerente de empresas exportadoras, no Norte do Paraná. Então, suas belas mãos já não eram calosas. Conheci as mãos de meu pai já delicadas, quentes e macias. Depois do jantar, eu colava o ouvido ao violão para ouvi-lo dedilhar, doce e suavemente, velhas valsas e sambas. Não havia calos na mão que tocava meu peito, enquanto ele me contava histórias e me cobria nas noites de frio. Meu pai já se foi há quinze anos, mas ainda sinto sua mão. É ela que me acalma, protege e conforta nos momentos de angústia, tristeza e desamparo.
A certeza desse afeto é que me deu força para, aos 17 anos, quando entrei na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, sair de casa e vir morar sozinho em São Paulo, onde não conhecia ninguém.
Quando me tornei pai, em 1967, aos 24 anos, tudo o que queria, e ainda quero, é poder tocar meus filhos com aquela mesma mão. Garanto: se você quer ser um bom pai ou uma boa mãe e ter filhos felizes, só precisa tocá-los dessa forma. O resto é detalhe.
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Acho engraçado dizerem que pai não pode ser amigo. Pode, sim. Meu pai foi, e eu nunca tive dúvidas em querer ser grande amigo dos meus filhos. Amigo de verdade não é o que é conivente com erros e deixa o outro fazer bobagem e caminhar torto. Amigo briga, até rompe a amizade quando vê o amigo estragando a própria vida. Um dia o amigo volta e agradece. Pai tem de ser amigo assim.
Muitas vezes me perguntei se gostava mais de um filho que de outro. Pergunta que todo mundo faz aos pais, achando que preferência é inevitável. Não vejo diferença entre os meus amores por eles. Vejo, sim, que em cada tempo estou mais próximo de um. Ou porque estou me identificando mais com o que ele está vivendo, ou porque acho que naquele momento precisa mais de mim - ou eu dele.
E sempre confiei neles. Sem nenhum esforço. Nunca acreditei ser saudável o comportamento do pai que desconfia, inquire, vigia e investiga. Isso não é cuidar. Cuidar é dar opinião, é defender de todo e qualquer ataque, é estar solidário, pronto para ajudar, mas respeitando a autonomia do outro e o pensamento diferente.
Culpa, só sinto pelos momentos em que fui pouco atento, ou interferi indevidamente na vida deles. Momentos em que não percebi ou não valorizei o sofrimento por que passavam, ou impus decisões contra a vontade deles. Momentos em que agi intempestiva ou agressivamente, perdi a cabeça. Momentos em que descarreguei neles raivas que trazia da rua ou de outras pessoas. Mas também aprendi que se esses erros não são o nosso padrão de comportamento, não têm conseqüências a longo prazo. Diluem-se em meio às situações em que predominou a compreensão, a confiança e o afeto.
Menino, reconheço, dá muito mais trabalho que menina. Menino briga em festa, bebe de cair, experimenta droga, picha muros, anda de moto, faz besteira, faz bagunça, vai preso. Deixa você bravo, preocupado, com a pulga atrás da orelha. Menina tem juízo. Nunca perguntei a nenhuma das meninas onde iam, com quem iam, que hora voltariam. Sempre soube que elas tinham mais juízo que eu, que sou menino. Aos meninos eu também não perguntava, mas com eles o resultado nem sempre foi bom. Devia ter perguntado. Errei.
Nosso maior sofrimento, no entanto, foi quando, depois de 21 anos, eu e minha mulher nos separamos. Não avaliei o quanto seria difícil. E não havia nada a fazer. Foi quando descobri que sempre há algo a fazer, sim. No caso, era chorar. Não esconder o que eu sentia, nem julgar a raiva ou a tristeza de cada um deles. Sofrer e chorar juntos, pelo inevitável, pela impotência, pelo caminho que a vida tomava. Dessa crise, acredito, saímos todos fortalecidos. Em diferentes momentos, morei sozinho, morei com os quatro, com dois, com uma das meninas e, finalmente, moro sozinho de novo. Divido meu tempo entre Florianópolis e São Paulo, aproveitando o que há de melhor nas duas cidades. Em Floripa, o que há de melhor é minha namorada, apesar de todo o respeito que eu tenho pela linda paisagem natural da ilha. Em São Paulo, o que há de melhor é meu neto Eduardo, apesar do meu amor por meus filhos e da minha profunda ligação com a vida da cidade.
Eduardo, meu primeiro neto, fez nove meses em junho. Ainda tenho comigo a grandiosa sensação do dia em que ele nasceu, e dirigi 700 quilômetros para vê-lo. Se ser pai nos traz a ilusão de sermos pequenos deuses, pelo milagre que é ver surgir de nós uma vida, ser avô faz de nós deuses maiores, pois nos traz a sensação de que geramos nada menos do que um deus! Finalmente, um alerta: quando você ouvir um avô dizendo que seu neto é a coisa mais linda do mundo, não acredite. Ele está sendo parcial, muito pouco objetivo, influenciado por essa falsa idéia de que produziu milagres. Nenhum deles pode ter originado a coisa mais linda do mundo, pois a verdadeira coisa mais linda do mundo é o meu neto, o Eduardo.
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Haha!
ResponderExcluirLindo, ótimo, e bem Ruy!
beijos