sexta-feira, 19 de julho de 2013

INIMIGOS DE NOEL

Tenho uma certa bronca de críticos de cinema. Quando criança e adolescente (no cinema, continuo sendo), via tudo quanto é filme que passava na minha cidade. Japoneses, franceses, argentinos, mexicanos, brasileiros, americanos. E o jornal local não tinha crítico de cinema. Era ótimo. Meu único trabalho era consultar o jornal para saber que filmes ainda não tinha visto. A partir dos 17 anos, já na matrópole, meus critérios de escolha passaram a ser sobretudo geográficos (prefiro os filmes a que possa ir a pé). Percebo, é claro, quando um filme é ruim. Mas isso não quer dizer que não goste dele, pois sentar-me numa poltrona confortável, apagarem a luz e passarem um filme para mim ainda é o grande prazer que conta. E não quero que os críticos atrapalhem isso (sou muito influenciável), com seus brilharecos e abobrinhas sobre o trabalho do diretor, do fotógrafo, do roteirista e dos atores. Não quero que façam comigo o que a avó de um conhecido fez com ele.
É bom homem, alto, forte, rígido e de uma inocente generosidade. Trabalha como assistente social. Conheci-o durante um workshop de psicoterapia corporal. Um de seus traços de personalidade é a impossibilidade total de sentir raiva. Coisas desagradáveis, horríveis mesmo, foram ditas a ele por participantes do workshop, e ele respondia com cândidos agradecimentos. Durante o workshop, trouxe uma lembrança de infância. Aos cinco anos de idade, na véspera de Natal, sua veneranda avó o chamou ao seu quarto e, como se lhe desse um grande presente, revelou, em segredo, que Papai Noel não existia. E mostrou todos os presentes comprados pela família, que à noite iriam ser distribuídos a ele e às outras crianças. Foi o pior Natal da vida dele. Ele era o único a ter o privilégio daquela verdade maldita, que deveria guardar consigo.
O condutor do workshop sugeriu-lhe deitar num colchão e espernear, gritando para a avó: “Papai Noel existe!”. À noite, compramos uma caixa de bombons e deixamos na porta do seu quarto, em nome de Papai Noel.
Lembrei-me dele ao ler críticas “engajadas” a uma oscarizante e oscarizada tragicomédia  que ganhou um Oscar. Os críticos desancam o “individualismo” de um  personagem-pai, que só se preocupa em fazer o filho feliz, em meio aos horrores de um campo de concentração e suas câmaras de extermínio de adultos e crianças.
Afinal, perguntam os críticos, que mensagem é essa? Seria essa a melhor maneira de educar um filho? Mentir a ele sobre o mundo, torná-lo despreparado para as agruras que terá de enfrentar na vida? Incentivar nele o egoísmo, o hábito de pensar em si, independentemente do sofrimento alheio? Ensinar-lhe o “salve-se quem puder”, deixando de lado as virtudes da solidariedade e do companheirismo?
Nunca inventei papai noel para os meus filhos, nem cegonha, nem coelhinho da páscoa, mas, mesmo em termos pedagógicos, o fato é que haveria muitos argumentos em favor de um pai como o do filme. Estudos baseados em crianças mandadas para creches, durante a guerra, mostram que a qualidade do colo, do carinho e do afeto recebido é que determina se a criança será um adulto solidário ou egoísta: quem é amado aprende a dar amor. Mas, além disso, uma obra de arte tem todo o direito de não querer dar lições de psicanálise, educação infantil ou luta antinazista. Sua única pretensão pode ser simplemente falar sobre até onde pode ir o extremo e ingênuo amor de um pai.

Num filme que nunca seria feito pelos valentes inimigos do Papai Noel.

Um comentário:

  1. Totalmente de acordo Ruy! Acredito que o filme em questão trata-se do "A vida é bela". O próprio título já responderia a todas as perguntas dos críticos. Tudo depende da forma como vemos o mundo, mesmo em situações tensas, temos a capacidade de fazer uma brincadeira e emanar luz aos demais. Excelente texto!

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