Tenho uma certa bronca de críticos de
cinema. Quando criança e adolescente (no cinema, continuo sendo), via tudo
quanto é filme que passava na minha cidade. Japoneses, franceses, argentinos,
mexicanos, brasileiros, americanos. E o jornal local não tinha crítico de
cinema. Era ótimo. Meu único trabalho era consultar o jornal para saber que
filmes ainda não tinha visto. A partir dos 17 anos, já na matrópole, meus
critérios de escolha passaram a ser sobretudo geográficos (prefiro os filmes a
que possa ir a pé). Percebo, é claro, quando um filme é ruim. Mas isso não quer
dizer que não goste dele, pois sentar-me numa poltrona confortável, apagarem a
luz e passarem um filme para mim ainda é o grande prazer que conta. E não quero
que os críticos atrapalhem isso (sou muito influenciável), com seus brilharecos
e abobrinhas sobre o trabalho do diretor, do fotógrafo, do roteirista e dos
atores. Não quero que façam comigo o que a avó de um conhecido fez com ele.
É bom homem, alto,
forte, rígido e de uma inocente generosidade. Trabalha como assistente social.
Conheci-o durante um workshop de psicoterapia corporal. Um de seus traços de
personalidade é a impossibilidade total de sentir raiva. Coisas desagradáveis,
horríveis mesmo, foram ditas a ele por participantes do workshop, e ele
respondia com cândidos agradecimentos. Durante o workshop, trouxe uma lembrança
de infância. Aos cinco anos de idade, na véspera de Natal, sua veneranda avó o
chamou ao seu quarto e, como se lhe desse um grande presente, revelou, em
segredo, que Papai Noel não existia. E mostrou todos os presentes comprados
pela família, que à noite iriam ser distribuídos a ele e às outras crianças.
Foi o pior Natal da vida dele. Ele era o único a ter o privilégio daquela
verdade maldita, que deveria guardar consigo.
O condutor do
workshop sugeriu-lhe deitar num colchão e espernear, gritando para a avó:
“Papai Noel existe!”. À noite, compramos uma caixa de bombons e deixamos na
porta do seu quarto, em nome de Papai Noel.
Lembrei-me dele ao
ler críticas “engajadas” a uma oscarizante e oscarizada tragicomédia que ganhou um Oscar. Os críticos desancam o
“individualismo” de um personagem-pai,
que só se preocupa em fazer o filho feliz, em meio aos horrores de um campo de
concentração e suas câmaras de extermínio de adultos e crianças.
Afinal, perguntam
os críticos, que mensagem é essa? Seria essa a melhor maneira de educar um
filho? Mentir a ele sobre o mundo, torná-lo despreparado para as agruras que
terá de enfrentar na vida? Incentivar nele o egoísmo, o hábito de pensar em si,
independentemente do sofrimento alheio? Ensinar-lhe o “salve-se quem puder”,
deixando de lado as virtudes da solidariedade e do companheirismo?
Nunca inventei papai noel para os meus filhos, nem cegonha, nem coelhinho da páscoa, mas, mesmo em termos
pedagógicos, o fato é que haveria muitos argumentos em favor de um pai como o do filme.
Estudos baseados em crianças mandadas para creches, durante a guerra, mostram
que a qualidade do colo, do carinho e do afeto recebido é que determina se a
criança será um adulto solidário ou egoísta: quem é amado aprende a dar amor.
Mas, além disso, uma obra de arte tem todo o direito de não querer dar lições
de psicanálise, educação infantil ou luta antinazista. Sua única pretensão pode
ser simplemente falar sobre até onde pode ir o extremo e ingênuo amor de um
pai.
Num filme que nunca seria feito pelos
valentes inimigos do Papai Noel.
Totalmente de acordo Ruy! Acredito que o filme em questão trata-se do "A vida é bela". O próprio título já responderia a todas as perguntas dos críticos. Tudo depende da forma como vemos o mundo, mesmo em situações tensas, temos a capacidade de fazer uma brincadeira e emanar luz aos demais. Excelente texto!
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