quarta-feira, 17 de julho de 2013

PATERNIDADE IRRESPONSÁVEL

Desde criança eu queria ser pai. De muitos filhos. Admirava famílias grandes, casas cheias de quartos com beliches, monte de gente falando na hora do jantar, bandejas correndo de mão em mão pela mesa imensa. Olhava para cada menina como uma potencial mãe dos meus filhos.
Depois descobri o sexo, atividade que sempre me deu muito prazer, e centrei-me nesse prazer. Nada podia ser melhor do que fazer sexo, sobretudo quando apaixonado. Era tão bom que desviava minha atenção do fato de que todo aquele prazer era exatamente o que fazia com que homens e mulheres se tornassem pais e mães. Até que minha namorada ficou grávida, e a relação entre um e outro desejo se estabeleceu com contundente clareza.
Grana pouca, 23 anos eu e ela 22. Em nenhum momento duvidamos de que a notícia era maravilhosa e casamos praticamente sem pensar. No dia do casamento, três meses de gravidez, o vestido dela, na altura dos seios, apresentava pinguinhos de leite. Foi para mim um bom sinal. Certamente teríamos uma substanciosa família, grande, feliz e bem alimentada. Paramos em dois casais de filhos. Não era a família grandona que eu imaginara antes, mas estava de bom tamanho para os tempos que corriam.
Nunca me senti realmente preparado para a paternidade ou para a vida (me aventurei, com sucesso, em três profissões, mas às vezes penso que minha verdadeira vocação e realização seria tocar harpa paraguaia e cantar guarânias em bares noturnos pesadamente boêmios). Entre culpas, medos e alegrias, porém, acho que tenho me saído razoavelmente bem.
Ninguém ensina ninguém a ser pai. Aprendizado de pai é transferência, com saltos de qualidade, de uma situação para outra. Fui aprendendo aos poucos, pensando e repensando a experiência e  imitando, mesmo sem querer, a referência de pai que tinha. Do meu pai recebi, mais que tudo, um afeto sem limites.
De escola meu pai só teve o primeiro ano primário. Filho de colono de fazenda, cresceu sendo peão para tudo, lavrador, cozinheiro, mecânico, motorista, marceneiro e lenhador, serrando troncos, produzindo e carregando dormentes para construção de ferrovia. À noite, à luz de velas, aprendia solitariamente em quartos de pensão, lendo livros de matemática, português (um velho e excelente dicionário encadernado por meu pai até hoje está comigo) e inglês. Aprendeu tudo sobre café e foi, já jovem, ser provador e classificador, e mais tarde, final da década de 40, casado e com três filhos, gerente de empresas exportadoras. Conheci as belas mãos de meu pai já delicadas, quentes e macias. Depois do jantar, eu colava o ouvido ao violão para ouvi-lo dedilhar, doce e suavemente, velhas valsas e sambas. Não havia calos na mão que tocava meu peito, enquanto ele me contava histórias e me cobria nas noites de frio. Ele se foi há muito tempo, mas ainda sinto sua mão. É ela que me acalma, protege e conforta nos momentos de angústia, tristeza e desamparo.
A certeza desse afeto é que me deu força para, aos 17 anos, sair de casa e ir sozinho para a metrópole, onde não conhecia ninguém.
Quando me tornei pai, tudo o que queria era conseguir tocar meus filhos com aquela mesma mão. Eu sabia que, para ter filhos felizes, só precisaria tocá-los daquela forma. O resto era detalhe.
Acho engraçado dizerem que pai não pode ser amigo. Pode, sim. Meu pai foi, e eu nunca tive dúvidas em querer ser grande amigo dos meus filhos. Amigo de verdade não é o que é conivente com erros e deixa o outro fazer bobagem e caminhar torto. Amigo briga, até rompe a amizade quando vê o amigo estragando a própria vida. Um dia o amigo volta e agradece. Pai tem de ser amigo assim.
Muitas vezes me perguntei se gostava mais de um filho que de outro. Pergunta que todo mundo faz aos pais, achando que preferência é inevitável. Não vejo diferença entre os meus amores por eles. Vejo, sim, que em cada tempo estou mais próximo de um. Ou porque estou me identificando mais com o que ele está vivendo, ou porque acho que naquele momento precisa mais de mim - ou eu dele.
Sempre confiei neles. Sem nenhum esforço. Estranho pai que desconfia, inquire, vigia e investiga. Isso não é cuidar. Cuidar é dar opinião, é defender de todo e qualquer ataque, é estar solidário, pronto para ajudar, mas respeitando a autonomia do outro e o pensamento diferente.
Culpa, só sinto pelos momentos em que fui pouco atento, ou interferi indevidamente na vida deles. Momentos em que não percebi ou não valorizei o sofrimento por que passavam, ou impus decisões contra a vontade deles. Momentos em que agi intempestiva ou agressivamente, perdi a cabeça. Momentos em que descarreguei neles raivas que trazia de outras pessoas. Mas também aprendi que se esses erros não são o nosso padrão de comportamento, não têm consequências a longo prazo. Diluem-se em meio às situações em que predominou a compreensão, a confiança, o afeto.
Menino, reconheço, dá muito mais trabalho que menina. Menino briga em festa, bebe de cair, experimenta droga, picha muros, anda de moto, faz besteira, faz bagunça, vai preso. Deixa você bravo, preocupado, com a pulga atrás da orelha. Menina tem juízo. Nunca perguntei a nenhuma das meninas aonde iam, com quem iam, que hora voltariam. Sempre soube que elas tinham mais juízo que eu, que sou menino. Aos meninos eu também não perguntava, mas com eles o resultado nem sempre foi bom. Devia ter perguntado. Errei.
Nosso maior sofrimento, no entanto, foi quando, depois de 21 anos, eu e minha mulher nos separamos. Não avaliei o quanto seria difícil. E não havia nada a fazer. Foi quando descobri que sempre há algo a fazer, sim. No caso, era chorar. Não esconder o que eu sentia, nem julgar a raiva ou a tristeza de cada um deles. Sofrer e chorar juntos, pelo inevitável, pela impotência, pelo caminho que a vida tomava. Dessa crise, acredito, saímos todos fortalecidos. Em diferentes momentos, morei sozinho, morei com os quatro, com dois, com uma das meninas e, finalmente, moro sozinho de novo. Hoje, além de namorar – sou um velho bem animadinho – minha grande diversão são meus netos.
Ainda tenho comigo a grandiosa sensação do dia em que nasceu meu primeiro neto. Se ser pai nos traz a ilusão de sermos pequenos deuses, pelo milagre que é ver surgir de nós uma vida, ser avô faz de nós deuses maiores, pois demonstra que a vida que geramos é outro deus!
Um alerta: muito cuidado quando você ouvir um avô dizendo que seu neto é a coisa mais linda do mundo. Não acredite. Ele está sendo parcial, muito pouco objetivo, influenciado por essa falsa ideia de que produziu milagres. Nenhum deles pode ter originado a coisa mais linda do mundo, pois a verdadeira coisa mais linda do mundo são os meus netos.
(republicado a pedidos - eu mesmo pedi)

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