Hoje é apenas esta bengala, mas já
tive de andar de cadeira de rodas, depois de andador, depois muletas canadenses.
Sim, além da bengala há essa órtese na perna esquerda, para que eu possa firmar
o pé no chão e ele não fique pendurado.
Aposentado, como você já sabe,
decidi morar numa ilha marítima. Nela sobrevivo bem com o dinheiro da
aposentadoria e ainda dá para viajar de vez em quando para, na época, ver meus
filhos, e mais tarde ver também os netos, que vão aos poucos aumentando em
número.
O primeiro mês na ilha teve, como
dificuldade, a incerteza da adaptação sem os vícios da cidade grande. A ilha
não tem uma cidade. Sendo capital do estado, tem um centro com muito
congestionamento de trânsito, funcionário público, áreas históricas, alguns
bares e restaurantes. No mais, aldeias de pescadores com os quais se pode
conversar bastante sobre peixes, redes, mar, baleias e novelas de TV. Ah, sim,
outro tema possível é o preço de peças para descarga de privada, borrachinhas
de torneira, fossas sépticas e caixas de gordura. E punto. As aldeias não se intercomunicam e competem
entre si. Muitos de seus habitantes morrem sem nunca ter ido ao centro.
Inevitável para mim não me sentir um peixe fora da água – e, talvez por isso
mesmo, passei meu primeiro mês na ilha praticamente dentro da água, apesar do frio que fazia naquele junho.
No último dia de junho, eu tinha de
fazer uma viagem de trabalho para uma cidade bem distante. Como,
coincidentemente, um grande amigo iria comemorar seu aniversário naqueles dias,
na cidade maravilhosa – que fica a meio caminho do meu destino - decidi ir às
festas do aniversário, que durariam dois dias. Com muita música (meu amigo é um
grande sambista), boas bebidas entre fermentados e destilados, comidas
fantásticas (meu amigo é especialista em moquecas, feijoadas e outras delícias)
e gente linda (outra especialidade dele), tudo era alegria.
Só pude, no entanto, participar do
primeiro dia de festa. Num bairro próximo, jovens soldados de traficantes
postaram-se à margem de uma avenida pela qual deveríamos passar, ao deixar a
festa. E passaram a descarregar seus fuzis em direção ao outro lado da avenida.
Talvez eles quisessem atingir as casas que havia do outro lado. Talvez eles
quisessem atingir colegas de profissão com os quais disputavam clientes ou
território. Talvez aquela fosse apenas sua diversão de fim de semana. Já era tarde da noite, e as balas traçantes
desenhavam contra o céu escuro suas linhas interrompidas. De longe, as
confundimos com retardatários fogos juninos, lançados por crente de santo feliz
por graça concedida. Chegando aos belos
desenhos, vinte minutos depois de sair do jantar do aniversário, nosso carro
foi atingido pela tal bala perdida de fuzil. Cruzando meu quadril, ela
destruiu, pela ordem: a área dos trocânteres, logo abaixo da cabeça do fêmur;
os dois ramos (fibular e tibial) do ciático (feixe de nervos responsáveis por
conduzir os comandos de sensibilidade e de movimentos das pernas); o osso
púbico; dez centímetros de uretra; e um pedacinho da próstata. O impacto foi
violento. Mais que dor, sofri uma avassaladora fraqueza, semelhante ao sufoco
que nos domina se, ao cair, batemos fortemente o cóccix. Levei a mão à coxa
esquerda. O sangue jorrava.
Um ano depois, o dirigente de uma
oenegê que faz trabalhos espiritualistas motivacionais em favelas me convida
pra um jantar, em sua casinha simples na praia onde moro. Surpresa: ele chamou,
sem me avisar, várias pessoas interessantes para que eu contasse a elas a
grande lição de vida daquela rica experiência, agonizante por meses, paralisado
numa cama, dores, dores, cirurgias, cirurgias (total: 16), dependendo de uma
cuidadora até para banhar-me, mesmo depois das temporadas hospitalares.
Fui bem mal educado com o dirigente
da oenegê e seus cândidos convidados. Disse-lhes que não recomendo tiro de
fuzil para ninguém, e que podemos muito bem passar sem essa bela lição de vida,
cacete.
Na cidade maravilhosa, o melhor
hospital local e a maioria de seus médicos quase me mataram. Só um deles
demonstrou dedicação, atenção real e competência. Baixinho, tímido, quase não
sorria, mas me falava a verdade, por grave que fosse, e me orientava sobre o
que ocorria. Aconselhou-me a cair fora de lá assim que pudesse.
Enquanto não conseguia fugir para a
grande metrópole, só sobrevivi graças a
minha família e a afetuosos e heroicos paramédicos do hospital. Alguns passaram
noites ao meu lado, ora à procura de veias para a medicação, ora tratando as
insistentes escaras e dores, ora me confortando nos desesperos maiores. Tive o
privilégio de ser cuidado e três vezes operado no mais prestigiado hospital
daquela cidade maravilhosa. Um inferno.
Mês e meio depois, embora já na
grande metrópole, bem cuidado e amparado o que pesava era a solidão. Ainda
totalmente dependente para todas as minhas necessidades, e ainda sem saber se
voltaria a andar, em um ano fiz mais cinco cirurgias. Uma reconstituição da uretra,
duas tentativas de recanalização dos ramos do ciático, uma para retirada de uma
sonda vesical que por razão desconhecida estava apaixonada e queria uma ligação
indissolúvel com minha bexiga, e duas para debelar debridamento – limpar o
trajeto da bala de detritos que ela trouxera ao vir procurando minha coxa, mais
algumas bactérias determinadas a guerrear com meu corpo. Nos intervalos entre
elas, passei a maioria de minhas horas lendo sofregamente e observando o céu e
alguns últimos andares de edifícios. Das 6 da manhã à noite, eu sabia a vida daquela paisagem. O
movimento dos pombos, a cabeça do velhinho que observava o dia por alguns
minutos e jogava ao ar sua bituca de cigarro de palha, as primeiras janelas
acesas, as últimas apagadas. Não poucas vezes, examinei detidamente a
possibilidade de, arrastando-me, conseguir chegar à janela, assomar ao
parapeito e deixar-me cair daquele décimo andar. Mas havia uma espécie de
curiosidade em mim. Um lado meu que de um ponto privilegiado observava tudo o
que se passava comigo e queria saber no que ia dar. Desse mesmo ponto e num
certo grau, em me senti privilegiado. Escolhido. Havia um certo narcisismo
nisso. Um lado que me achava bárbaro. Forte. Imaginava as pessoas dizendo, umas
para as outras, “mas que homem maravilhoso, passar por tudo isso sem perder a
força, o bom humor. Que prodígio, que fortaleza!”.
Outra dúvida que havia era se eu
conseguiria voltar a fazer sexo. Voltei. Não com os momentos de glória do
passado, mas a turma gosta, e eu também.
Sem comentários...fiquei com um nó na garganta. É a verdade nua e crua...e muito bem escrita. Parabéns!
ResponderExcluirVim aqui por recomendação de meu amigo Luiz Victor Val Myszkowski...Um abraço