Naquele tempo, década de 1960, os
grandes escritórios de advocacia ficavam na área central da metrópole, em torno
dos fóruns e dos tribunais. E aquele era um dos maiores em direito criminal,
minha disciplina preferida na faculdade. Sorte ou azar, o titular do
escritório, embora muito jovem e já rico com o exercício da advocacia, era
filho de um grande amigo do meu padrinho de casamento (e guru, e ídolo, um
velho que eu amava), que me recomendou para um estágio no escritório.
Por que decidi advogar? Primeiro
porque, recém-casado, mulher grávida, precisava ganhar mais. Segundo, porque
estava às turras com os novos chefes da redação e o chefe deles, um cara alto,
falastrão, megalômano, mitômano e para cuja fama de ser um dos melhores
jornalistas brasileiros nunca vi razão. Na época, dizia-se que para marcar
presença, sempre que alguém assumia uma redação, verificava se na diagramação
das páginas se usava um fio vertical separando as colunas de texto. Se houvesse
o fio, mandava retirar. Se não houvesse, mandava por. Pois o grande jornalista
que veio substituir, com o titulo de diretor, o secretário de redação que o
patrão demitira, verificou e viu que não havia o fio. Mandou por. Além disso,
livrou-se dos bons editores que tínhamos, criou uma profusão de novas chefias e
as entregou a amigos trazidos de fora. Vários deles bons professores
perseguidos pela direita numa grande universidade pública, mas ser perseguido
não faz de ninguém, necessariamente, um bom caráter ou um bom jornalista. E
mesmo os que, dentre eles, eram bons caracteres e até bons jornalistas, como
provaram mais tarde em outros lugares, ali naquela redação não fizeram
rigorosamente nada de significativo. Limitavam-se a ficar separando, por
assunto, os telegramas que chegavam das agências internacionais de noticias,
dos correspondentes e sucursais, encaminhando-os para os editores, ou a
requisitar carros e fotógrafos para os repórteres, ou a checar o cumprimento de
horários e enquadrar repórteres e redatores com ordens incompetentes e até
absurdas e idiotas, como a de determinar que, quando um repórter soubesse que
outro jornal iria publicar a mesma notícia, não deveria sequer trazê-la para a
redação. Como eu cobria a área política, o que fazia era trazer a reportagem e
dizer, por exemplo: “Olha, o ex-presidente vai ser cassado por causa desta
entrevista. A entrevista foi coletiva. Se não quiser, não publique, mas será uma
imbecilidade”. Meu novo chefe, um burro sociólogo que mais tarde se revelou um
grande picareta, vivendo (bem) de lobbies
desonestos para multinacionais em concorrências e licitações, vivia
criando essas preciosidades éticas. Minha paciência se esgotou no dia em que
chamou-me a sua mesa e me passou um recorte de um jornaleco do Rio de Janeiro.
Esse jornaleco tinha tentado pressionar o prefeito de nossa cidade a lhe
conceder uma grande verba publicitária. O prefeito, militar reformado da
Aeronáutica, desprezou a pressão, e o jornaleco passou a fazer uma campanha
suja contra o prefeito. Inventava “escândalos” e encomendava a seu
correspondente em nossa cidade que criasse “fontes” que incrementassem a
campanha. O correspondente se divertia com isso, e nós também. Em mesas de bar,
contava aos colegas que ia inventar isso e aquilo. Chegou a imaginar um grupo
de deputados e vereadores que iriam criar comissões parlamentares contra o
prefeito. Tudo cascata, como se diz no jargão jornalístico. Cascatas sucessivas,
com águas volumosas, borrachudos e arco-íris. Pois o recorte que ele me passava
era justamente o das CPIs inventadas. Quando ele me disse “isso sim, é que é
jornalismo”, explodi. Comecei tentando falar baixo: “Isso é pura cascata, e
você é um bocó”. Mas quando vi já estava aos berros, e me dirigindo ao chefe
dos chefes: “Não trabalho mais com este imbecil aqui!”. Para que eu não criasse
mais problemas, passaram-me para o período da manhã, em que acabei até me
divertindo com um chefe picareta – mas este era de uma picaretagem inocente,
pois, tendo cinco empregos públicos em que não trabalhava, gostava de receber brindes de empresas, entradas para
shows e que tais. Deixava-me fazer o que quisesse. Eu lhe passava frequentes
trotes telefônicos, e ele me deixava fazer grandes reportagens especiais, com
as quais acabei me destacando e sendo convidado para a grande editora de
revistas.
Antes disso, porém, houve a
experiência com a advocacia de que comecei a falar linhas atrás.
Grande compositor gaúcho, Lupicínio Rodrigues,
pregando o desamor, diz a Esses Moços que quem ama deixa o céu por ser escuro e
vai ao inferno em busca de luz. Pois minha tentativa de deixar o jornalismo
pela advocacia foi assim. O luxuoso escritório ocupava um andar inteiro na
principal avenida dos arredores dos tribunais. E tinha uma bem articulada e
azeitada equipe de profissionais fixos e colaboradores eventuais. Os fixos: uma
experiente secretária, um conhecido jornalista-advogado (depois vi que o plano
do titular era eu ser o segundo), um perito da polícia técnica, um diretor do
fórum. Entre os eventuais, havia promotores públicos, professores de direito,
médicos famosos, jornalistas, outros policiais, advogados e quem quer de que ele precisasse
para ganhar uma causa, utilizando fraudes inimagináveis. Uma parte do trabalho,
admito, me realizava: escrever. Ou reescrever – pois às vezes ele me pedia para
refazer trabalho de outros. Eram apelações, ou contestações, ou petições
iniciais que, eu soube depois, eram feitas por promotores públicos – isso
mesmo, não estranhe. Promotores, e até juízes, que ele pagava, com grandes
somas, para colaborarem com o escritório. Claro que isso era ilegal, mas
aparentemente mais inocente do que simplesmente oferecer-lhes dinheiro sem
nenhuma contrapartida. Só para tê-los no bolso quando lhes caísse nas mãos – ou
nas mãos de um colega próximo deles - um
processo do escritório. Vou resumir dois casos que ilustram como funcionava.
Caso um: um industrial mata a tiros
seu genro (e sócio, que, alega, o estava roubando) e corre para o escritório. O
grande advogado, imediatamente, monta uma história e cria as “provas” dessa
história. Primeiro, chama o perito criminal. Este desfere uma série de socos
nas virilhas e coxas do industrial. O grande advogado, com o auxilio do
jornalista-advogado, escreve um falso depoimento para ser decorado e
exaustivamente ensaiado pelo industrial.
O texto, feito para justificar a tese de legítima defesa, faz do assassino uma
vítima indefesa, perseguida por um implacável e violento traidor. Primoroso,
começava com a comovente frase: “Eu o amava como a um filho...”. Bem decorado e bem representado, a ponto de o
velho industrial derramar lágrimas, o assassino é apresentado à polícia, é
feito o exame de corpo de delito – que “comprova” o brutal ataque do
genro-sócio, e assim vai-se buscando a justiça – busca que incluiu o depoimento
de um conhecido jornalista, contando à Justiça que, dias antes do assassínio,
encontrara, vagando pelas ruas, o desesperado industrial, sem saber o que fazer
com a trágica situação em que se encontrava, humilhado, traído e perseguido
pelo genro que tanto amara e protegera. Triste e arrasado, chorou no ombro do
grande amigo, que, segundo o depoimento, há muito não via (na verdade, nunca o
vira mais gordo, pois o conheceu no escritório, e lhe pagou uma boa grana).
Foram tantas as manobras e falsos testemunhos (um funcionário da indústria
chegou a dizer que ouvira uma longa discussão e o som de poderosos pontapés do
genro no velho, quando, na verdade, este foi recebido a tiros assim que chegou
à fábrica), que o processo foi se arrastando, e o velho acabou morrendo, de
velho mesmo, sem ter passado um só dia na prisão e nunca ter ido a júri.
Caso dois: atendendo a um pedido da
policia de outro estado, uma equipe de investigadores sai à procura de um
bandido que fora visto, dirigindo um carro importado, numa rua próxima à
delegacia em que trabalhava. Um dos investigadores vê um carro que poderia ser
o do bandido, saca uma arma de cano longo e manda parar. O homem, na verdade um
comerciante do bairro, pensa que está sendo assaltado e pisa no acelerador. O
policial descarrega o revólver no motorista, que morre no local.
Milagrosamente, o policial entrega seu revolver para a perícia – e ele não
havia disparado um só tiro. Além disso, seu revolver tem cano curto! A defesa,
feita gratuitamente pelo escritório – que não cobrava de policiais nem de
jornalistas, pois os primeiros ajudavam a fraudar provas, e os segundos
divulgavam ao grande público as versões que interessavam ao grande advogado –
incluiu a destruição dos testemunhos de que o policial dera os tiros, através
de outras testemunhas, que garantiram que ele nem tocara em sua arma, de resto
de cano curto, e mais um oftalmologista, que examinou as testemunhas de
acusação e provou que todas tinham problemas de visão, sendo impossível que
pudessem perceber quem realmente atirou. Uma história em quadrinhos, projetada
para o júri, mostrou também que, na posição geográfica em que se encontrava, o
policial não poderia ter dado os tiros que mataram o comerciante. O crime ficou
sem solução, pois nunca foi possível descobrir de onde os tiros tinham saído. A
defesa só não foi ainda mais magistral porque não se encontrou nenhum marido
disposto a confessar o crime e, bem remunerado, ir para a prisão, acusando o
morto de ter comido sua mulher.
Apresentado certa tarde, no fórum
criminal, a um grande criminologista, este, ao saber com quem eu estava
trabalhando, fez cara de nojo e me disse: “Esse escritório é horroroso. Frauda
demais”, “Há um grau de fraude”, ele acrescentou, “que todo advogado às vezes
pratica, ainda que seja para compensar as fraudes da outra parte. Mas para esse
nosso colega não há fronteiras!”.
Não havia mesmo. Comecei a suar frio
cada vez que acompanhava um cliente a uma audiência ou à policia, ou
participava de um júri.
À noite, os pesadelos se sucediam.
Neles eu era preso e torturado. Acordava chorando, apavorado. Minha filha já
tinha nascido e eu não queria que o pai dela fosse aquele que eu teria de ser.
Saí enquanto a sujeira ainda podia sair no banho.
Com ímpeto adolescente, voltei a
amar o jornalismo, e, feliz, a me concentrar nele. Um ano depois, eu já chefe
de reportagem da revista de automobilismo, o grande advogado me ligou.
Precisava do meu texto e do meu talento, disse. Me ofereceu sociedade – uma
razoável participação em todas as causas do escritório. Coisa para ficar rico –
e morrer de angústia – em poucos anos. Com cuidadosa delicadeza e um grande
alívio, recusei.
Se sou mesmo honesto ou medroso, até
hoje não sei. Mas sei que tenho muita saúde, mesmo depois de ter levado um
tiro, bala perdida de fuzil, numa cidade maravilhosa.
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