quinta-feira, 20 de junho de 2013

FEROCIDADE ÉTICA


Chefiei a a reportagem de uma revista de automobilismo. Ao entrar para a revista como repórter de denúncias (motoristas de ônibus e caminhões enlouquecidos por anfetaminas, falsificações de carteiras de habilitação, insegurança no trânsito, corrupção policial etc.), nem sabia dirigir um carro. Mas o jornalismo é assim. Alguns anos depois fui editor da maior das revistas semanais, e minha editoria incluía esportes, sem que até hoje eu tenha uma noção mais precisa do que é um gol. Pênalti ou, pior, impedimento, nem pensar.

Na revista de automobilismo um repórter era o encarregado de revelar, às vezes com um ano ou  mais de antecedência, os novos lançamentos da indústria automobilística. Convicções e nome bíblicos, marido e pai amoroso, ele regia o coro de sua igreja batista em todos os cultos. No trabalho, sua principal tarefa era contatar, diariamente, uma rede de espiões que mantinha nas fábricas, e, acompanhado de bravos fotógrafos, flagrar os protótipos em testes em estradinhas desertas de longínquos municípios do interior, praias remotas, montanhas quase inacessíveis. Apanhou algumas vezes, teve câmeras destroçadas, foi forçado a entregar filmes, levou até tiros certa vez em que invadiu uma fazenda de madrugada. Mas nunca voltou à redação de mãos abanando. Os filmes entregues eram sobras, as câmeras destruídas já estavam vazias, e a revista, mês após mês, renovava seus furos e fazia sucesso nas bancas.

Na época, como agora, nem tudo se podia publicar. Tínhamos na redação, por exemplo, o volumoso relatório de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que investigara a indústria automobilística. Um dado me impressionou: o carro mais vendido no país, um pequeno, muito forte, que havia substituído o jipe no Paraná e o jegue no Nordeste, era muito inseguro. Esse carrinho era exportado para os Estados Unidos, mas só entrava lá se houvesse nada menos do que 130 modificações que lhe dessem maior segurança. Só que, se feitas essas mudanças aqui (uma delas, lembro-me, era um arco de aço sob a capota, para a absorção de choques), o carrinho ficaria muito caro, e não conseguiria vencer a concorrência do jipe. E do jegue.

Quando a revista tocava em temas assim delicados – pois os atingidos eram os maiores anunciantes da editora – fazia-o de forma genérica e um tanto superficial. Era preciso muita habilidade para isso, pois não queríamos perder credibilidade junto ao leitor, não queríamos brigar com os anunciantes (a editora não queria), e, ao mesmo tempo, não queríamos ser infelizes. Nossa felicidade, esclareça-se, não vinha dos nossos salários, que, na editora, eram os melhores do país. Era muito bom ganhar bem – e portanto morar bem, frequentar bons lugares, ter os filhos em bons colégios, enfim, era tudo bom. Mas naquele tempo – agora ainda há jornalistas assim, para sua informação, só que ganhando muito mal -, jovens e impetuosos, dávamos um trabalhão aos patrões. Defendíamos com unhas e dentes a verdade que queríamos levar ao leitor. Sabíamos estar trabalhando para a editora, e sabíamos que a editora queria ganhar muito dinheiro. Mas o fato é que se uma publicação não tem leitores, dificilmente terá anúncios, não? Então cuidávamos ferozmente do interesse do leitor.

Pois a mesma fábrica desses carrinhos fazia um outro carrinho, menor ainda – só cabiam nele duas pessoas -, bem bonitinho, e que vendia muito pouco, pois só servia para um menino passear com a namorada, e naquele tempo os meninos não ganhavam carro do pai. Alguns dos que ganhavam compravam esse segundo carrinho da fábrica. E aí a fábrica resolveu fazer um terceiro carrinho, que deveria ser um estouro de vendas. Tinha linhas esportivas avançadíssimas para a época embora seu motor também não fosse muito potente. Seu projeto – já havia um protótipo construído, num galpão dentro da fábrica – era um segredo secretíssimo, guardado a sete chaves. Mas para o nosso maestro batista não havia obstáculo possível. Pacientemente, ele foi fazendo novos contados na fábrica, juntando dados, dando, imagino, uma grana aqui outra acolá, até que um dia tinha o plano pronto: um de seus colaboradores, no horário de almoço da fábrica, deixaria uma escada apoiada numa das paredes do tal galpão, entraria nele com uma cópia da chave da porta, tiraria a lona que cobria o protótipo e aguardaria, por alguns minutos, que ele fosse fotografado. Só não poderia acender a luz do galpão, para não chamar a atenção da segurança. Nosso repórter e o fotógrafo, munidos de um mapa do local, conseguiram passar pela portaria alegando que iam à assessoria de imprensa, esgueiraram-se pelos prédios da administração e da produção e entraram na área do galpão. A escada estava lá. O fotógrafo subiu, vislumbrou, mesmo às escuras, o ponto em que estava o carro e bateu várias chapas. Depois, meticulosamente, foi revelando o filme, milímetro a milímetro, até conseguir uma nitidez perfeita da imagem. Era um belíssimo protótipo amarelo, aquele em que a empresa apostava todas as suas fichas para dominar o mercado de esportivos no Brasil.

 

A capa ficou linda. O amarelão do protótipo chamaria a atenção nas bancas. Em grandes letras, anunciávamos o futuro lançamento. Na reportagem, além de descrevê-lo, contávamos em detalhe a aventura dos nossos profissionais.

O diretor da revista estava em férias na Europa. Eu e o secretário de redação estávamos responsáveis pela revista. De repente, vem da gráfica a notícia: a impressão foi paralisada, por ordem da alta direção da editora. Ainda estávamos confusos, quando o patrão nos chamou pra conversar. Resumo: a fábrica também tinha seus espiões, e soubera da reportagem. Imediatamente percebeu que se fosse publicada seu carrinho de menino passeador não iria vender nunca mais uma unidade sequer. O presidente da fábrica no Brasil ligou pessoalmente para o nosso patrão e declarou que, se a reportagem fosse publicada, cortaria todos os anúncios de todas as revistas da editora, que não eram poucas. O prejuízo seria grande.

“Pensei em propor tirarmos a reportagem, desde que eles dobrem a quantidade de anúncios” - disse ele. O lucro seria grande.

Assustado, olhei para o secretário de redação, meu amigo, que me olhava assustadíssimo.

Não são muitos, na vida de um cidadão comum, os momentos em que é possível praticar um ato trágico ou heroico. Momentos em que se tem a clara noção de estar participando da história, de alguma história, pelo menos. Que alimentam esse ocasional orgulho besta de achar que fazemos a diferença, e que é por isso que vale a pena viver. Aquele era um momento, e eu não quis deixá-lo passar, mesmo porque um dia poderia contá-lo num livro. Olhei firme – mas sereno – os olhos do patrão e lhe disse: “Não acho uma boa ideia. A redação não vai aceitar isso”. O patrão entendeu a situação, e, pra minha surpresa, nem hesitou. Bateu a mão espalmada na mesa e concluiu: “Então OK, vamos partir pra briga”.

As férias do diretor de redação foram interrompidas, e houve três dias de duras, depois um pouco mais macias, e finalmente quase cordiais discussões. A matriz europeia participava das negociações, por telex. E aconteceu o que eu achava que ia acontecer. A fábrica estava acostumada com uma imprensa picareta, dócil, que cedia a qualquer pressão por uns trocados. A imprensa das matérias pagas, das “edições especiais” patrocinadas por empresas, governos ou mesmo pessoas físicas poderosas. Não esperava que brigássemos com ela. E, certamente, começou a pensar nos demais prejuízos que poderia ter com uma eventual guerrinha contra a editora. Previu, por exemplo, o que seria ter contra ela mais de uma centena de publicações diferentes, denunciando as 130 falhas de segurança do seu carrinho. Revistas infantis, juvenis, revistas para a dona de casa, para a mãe, para a moça que trabalha, para a moça virgem, para o executivo, para outras empresas e empresários em que personagens de ficção e entrevistados, sem exceção, descessem a lenha nos seus carrinhos. E foi cedendo, cedendo, cedendo, e cedeu.

A única concessão que acabamos fazendo – só para eles poderem dizer à matriz europeia que também tínhamos cedido em alguma coisa – foi não contar, no texto, que as fotos foram feitas na hora do almoço. O resto foi digerido pela poderosa transnacional. A duras penas, mas foi. Mais uma vez a Europa se curva. 

2 comentários:

  1. Ruy, maravilha. Nem sabia desse caso. O fato é que, quando passei por lá, a empresa nem tomava mais conhecimento. Os "segredos" eram publicados e pronto. Por que não fazer uma justa homenagem ao nosso maestro da igreja Batista, colocando o nome dele? Em um ano que não me lembro, batalhei para que ele ganhasse o prêmio Abril - o mais importante, o de reportagem - pelo "conjunto da obra". Recebeu.

    ResponderExcluir
  2. Claro, queridíssimo Marão. NEHEMIAS SPERETA VASSÃO, de saudosíssima memória, e muito merecidamente premiado por tua iniciativa, era o nome do nosso heroi. Nesses textos, como expliquei num anterior, eu não tenho posto nomes, porque escrevo de memória(ela se confunde, às vezes) e tento evitar uma ou outra injustiça.

    ResponderExcluir