Que onda dos meus sucessivos mares
afogou a imensa culpa das antigas manhãs?
Eu rememorava o dia anterior e nada.
Obrigações cumpridas. Crianças à escola, caminhada, trabalho duro até tarde da
noite, correção de erros e negligências de minha diretora e da equipe. Dívidas
pagas, nenhuma traição (nem à minha mulher, que bem merecia uma traiçãozinha),
nenhum mal. Mas a culpa ali estava, espessa e indigesta, fazendo do meu corpo
uma carga insuportável. Mas o dia tinha de começar. Era preciso encontrar ar, e
eu o buscava com o esforço possível. Juntava meu corpo, pedaço a pedaço, ia
tomando-me nas costas e me levava, ao café da manhã, ao trajeto para a escola
das crianças e o mais. Cada ato, cada palavra dita, cada novo movimento, aos
poucos amenizava a lembrança do nada que me culpava, e a vida podia enfim
seguir.
Culpa, sobretudo uma culpa assim,
que vem do nada, deve ser coisa de gente honesta, não?
Era um bom argumento a favor da
minha honestidade. E naquela época era só culpa mesmo. Ainda não havia medo,
nem mesmo medo de minha inocência ser punida. Talvez, isso sim, um desejo de
punição. Algum sofrimento físico que pudesse me livrar do mal que não fizera.
Ou (dúvida) do bem que deixara de fazer?
Já o medo, dominador e sufocante,
veio anos mais tarde.
Houve também a angústia de três
sonhos recorrentes. Acompanharam-me, noite a noite, alternando-se anos a fio. Mas
também já se diluíram.
Sonho número um (a ordem não é de
importância não. O sentimento tem a mesma intensidade, nos três): estou num
hotel muito luxuoso, à beira-mar. Terminou meu prazo para a fase de apuração da
reportagem, e não tenho uma informação sequer. Gastei uma grana da editora e
vou voltar à redação sem ter feito nenhuma entrevista, nenhuma pesquisa, nada.
O sonho não especifica por que isso
ocorreu. Não diz se eu não consegui nada, se eu simplesmente não soube o que
fazer ou se eu vagabundeei o tempo todo em que estive no hotel. Tentando
preencher, não sei se com a memória ou com minha deficiente lógica, alguns
dados do sonho, parece-me que, embora o hotel seja à beira-mar, não fui nenhuma
vez à praia, para não perder meu precioso tempo de trabalho. Na vida real, pelo
menos, era assim. Depois de uma entrevista eu voltava ao hotel, revia as
anotações, acrescentava o que faltava, deixava as informações mais claras,
completava palavras anotadas às pressas (por medo de não as entender depois), e
registrava aspectos do ambiente, cores das paredes, móveis e objetos que havia
na sala, tom de voz e emoções do entrevistado. Tudo que pudesse me ajudar
depois ao redigir o texto. Nesses momentos já se iam delineando também o
título, os destaques do texto, as fotos que iriam ilustrá-lo. Se o texto
ficasse bom, se a reportagem fosse importante, se as pessoas elogiassem,
ninguém perceberia que eu era uma fraude.
Sonho dois: estou desempregado e
alguém me chamou para um trabalho. É num jornal em que já trabalhei, mas cuja
redação hoje está dominada por um grupo que não conheço, e que veio de outro
estado. Eles são famosos, eu já não sou. Alguns deles sabem do meu passado, mas
o desprezam. Há um tom irônico na
maneira como me tratam e me dão tarefas de terceira categoria, quando dão. E
nunca me pagaram nada. As vezes esse sonho se passa numa grande redação, eu num
canto, ninguém fala comigo. Outras vezes estou fora da redação, num ambiente
cheio de arquivos, eu numa mesa apertada entre dois arquivos e nada para fazer.
Outras ainda, trabalho, também sem receber – mas nunca reclamo, pois não quero
que saibam que sou um fracassado -, numa redação cheia de gente num espaço
pequeno, sem janelas, tentando fazer sobreviver uma publicação praticamente
falida.
Sonho três: anos depois de formado,
tenho de voltar à faculdade de psicologia. A administração da escola descobriu
que, nos meus sucessivos trancamentos de matrícula, deixei de cursar algumas
disciplinas. Tenho de fazê-las agora, sob pena de ter o diploma cassado. Percorro
os corredores e escadas atrás de aulas em que, cansado, entediado e humilhado,
ouço lições do que já sei e com o que não concordo.
E havia, como você certamente já
percebeu, uma quase convicção de que eu era uma fraude. Desde criança, sempre
que falavam da minha inteligência, da minha simpatia e de outros dons de
prestígio, eu pensava comigo mesmo: mais um que se engana. Caramba, eu poderia
ao menos me orgulhar por ter enganado mais um, mas nem tal talento, eu sabia,
haveria em mim. Era sorte, era coincidência ter ocorrido o que motivou a falsa
impressão – ou era apenas a mediocridade maior do outro que o levava a me
julgar talentoso. A certeza da fraude me exigia um esforçado disfarce. Dava
certo. Só eu mesmo sabia o bosta que era.
Suspeito que entre essas duas
características – a certeza de ser uma fraude e o sentimento de culpa – há
alguma conexão.
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