Impossível não mentir. Por trás de
tudo o que sinto há um imperceptível preconceito que me faz ser injusto. E,
talvez pior, por trás do que penso há um desejo, que me faz pensar torto. E aí,
queira ou não, minto. Minto quando conto o que vi e vivi, e quando exponho
minhas precárias teorias. Seleciono o que confirma minhas ideias e realiza meus
desejos. Recordo o que recordo, não o que ocorreu, e, assim, o que quero que
tenha ocorrido produz a mentira.
Por isso tento (nem sempre consigo)
evitar nomes, sobretudo os de quem não está bonito em minhas memórias
fotográficas. Nomeados injustiçados ficam sem defesa – ou você já viu um
desmentido limpar o nome de alguém?
E por que conto? Para rir, chorar e
dividir dores e prazeres com você, e assim ficarmos menos sós. Contar me faz bem. Drummond diz mais ou menos
o seguinte: "Não me considero um escritor. Sou apenas uma pessoa que
escreve. Que escreve porque tem de escrever, e que começou a fazê-lo para
cuidar das necessidades da alma. Como uma psicoterapia sem divã. Mesmo porque
nesse tempo não havia psicanalista em Minas".
Escrever sempre me foi terapêutico.
Adolescente, eram cartas e cartas para amigos e amigas distantes, tios, tias,
primos e avós – além das sobras de páginas dos meus cadernos de escola, quando
escrevia para mim mesmo. Ajudava-me a sair da depressão e da confusão. E ainda
ajuda.
Certa vez, já adulto, encontrei um
caderno de escola dos meus 15 anos, se tanto, em cuja última página alinhei as
"Razões para renunciar à Presidência do Grêmio Literário e Recreativo
Filadélfia". Viajei por aquele rico momento do passado, recordando como o
pequeno texto me ajudou a não renunciar, e a ressignificar e enfrentar melhor
as pressões que sofria, a insegurança, as brigas com os professores, as
decepções com colegas, a impotência, a solidão e o desamparo. O quanto meus
escritos – e mais os derramados sambas-canções de sabor nelsongonçalviano e
adelinomoreiresco que eu compunha na época – me ajudaram a tomar as primeiras
grandes decisões da vida.
Fazer música – algumas delas até com
certo grau de qualidade - tinha função semelhante. Na faculdade de psicologia
tive dois anos de Estatística, e era, sabe-se lá por quê, a disciplina mais
difícil do curso, com professores rigorosíssimos, empenhados a nos convencer de
que, em matéria de psicologia, nada pode ser mais importante do que um desvio
padrão, um teste de proporção ou um “fi” - não me pergunte o que é fi, por
favor. Maluquices do nosso ensino, pois nem eu nem nenhum dos meus colegas
nunca usou nada daquilo. Um dia tive uma briga feia com um dos professores, que
cometera erros grosseiros na correção de uma prova minha (ele não conseguia
entender meus rascunhos, feitos no verso da prova, e por isso anulou várias das
minhas respostas. Deu-me um trabalhão explicar meus peculiares raciocínios que
justificavam as respostas, todas corretas). Ganhei a briga, mas a raiva
restante ainda era grande, e no dia da última prova compus uma marchinha que
começava assim: "Adeus, Estatística, não quero mais te ver. Não sei como
te aguentei dois anos, Estatística. Por mim, você pode morrer!". Ensaiei
com alguns colegas, e cantamos no pátio para os professores. Saudabilíssima
vingança.
Pois então, sigo por aí, me
adoecendo e me curando...
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