Chefiei a a reportagem de uma
revista de automobilismo. Ao entrar para a revista como repórter de denúncias
(motoristas de ônibus e caminhões enlouquecidos por anfetaminas, falsificações
de carteiras de habilitação, insegurança no trânsito, corrupção policial etc.),
nem sabia dirigir um carro. Mas o jornalismo é assim. Alguns anos depois fui
editor da maior das revistas semanais, e minha editoria incluía esportes, sem
que até hoje eu tenha uma noção mais precisa do que é um gol. Pênalti ou, pior,
impedimento, nem pensar.
Na revista de automobilismo um
repórter era o encarregado de revelar, às vezes com um ano ou mais de antecedência, os novos lançamentos da
indústria automobilística. Convicções e nome bíblicos, marido e pai amoroso,
ele regia o coro de sua igreja batista em todos os cultos. No trabalho, sua
principal tarefa era contatar, diariamente, uma rede de espiões que mantinha
nas fábricas, e, acompanhado de bravos fotógrafos, flagrar os protótipos em
testes em estradinhas desertas de longínquos municípios do interior, praias
remotas, montanhas quase inacessíveis. Apanhou algumas vezes, teve câmeras
destroçadas, foi forçado a entregar filmes, levou até tiros certa vez em que
invadiu uma fazenda de madrugada. Mas nunca voltou à redação de mãos abanando.
Os filmes entregues eram sobras, as câmeras destruídas já estavam vazias, e a
revista, mês após mês, renovava seus furos e fazia sucesso nas bancas.
Na época, como agora, nem tudo se
podia publicar. Tínhamos na redação, por exemplo, o volumoso relatório de uma
Comissão Parlamentar de Inquérito que investigara a indústria automobilística.
Um dado me impressionou: o carro mais vendido no país, um pequeno, muito forte,
que havia substituído o jipe no Paraná e o jegue no Nordeste, era muito
inseguro. Esse carrinho era exportado para os Estados Unidos, mas só entrava lá
se houvesse nada menos do que 130 modificações que lhe dessem maior segurança.
Só que, se feitas essas mudanças aqui (uma delas, lembro-me, era um arco de aço
sob a capota, para a absorção de choques), o carrinho ficaria muito caro, e não
conseguiria vencer a concorrência do jipe. E do jegue.
Quando a revista tocava em temas
assim delicados – pois os atingidos eram os maiores anunciantes da editora –
fazia-o de forma genérica e um tanto superficial. Era preciso muita habilidade
para isso, pois não queríamos perder credibilidade junto ao leitor, não
queríamos brigar com os anunciantes (a editora não queria), e, ao mesmo tempo,
não queríamos ser infelizes. Nossa felicidade, esclareça-se, não vinha dos
nossos salários, que, na editora, eram os melhores do país. Era muito bom
ganhar bem – e portanto morar bem, frequentar bons lugares, ter os filhos em
bons colégios, enfim, era tudo bom. Mas naquele tempo – agora ainda há
jornalistas assim, para sua informação, só que ganhando muito mal -, jovens e
impetuosos, dávamos um trabalhão aos patrões. Defendíamos com unhas e dentes a
verdade que queríamos levar ao leitor. Sabíamos estar trabalhando para a
editora, e sabíamos que a editora queria ganhar muito dinheiro. Mas o fato é
que se uma publicação não tem leitores, dificilmente terá anúncios, não? Então
cuidávamos ferozmente do interesse do leitor.
Pois a mesma fábrica desses
carrinhos fazia um outro carrinho, menor ainda – só cabiam nele duas pessoas -,
bem bonitinho, e que vendia muito pouco, pois só servia para um menino passear
com a namorada, e naquele tempo os meninos não ganhavam carro do pai. Alguns
dos que ganhavam compravam esse segundo carrinho da fábrica. E aí a fábrica
resolveu fazer um terceiro carrinho, que deveria ser um estouro de vendas.
Tinha linhas esportivas avançadíssimas para a época embora seu motor também não
fosse muito potente. Seu projeto – já havia um protótipo construído, num galpão
dentro da fábrica – era um segredo secretíssimo, guardado a sete chaves. Mas
para o nosso maestro batista não havia obstáculo possível. Pacientemente, ele
foi fazendo novos contados na fábrica, juntando dados, dando, imagino, uma
grana aqui outra acolá, até que um dia tinha o plano pronto: um de seus
colaboradores, no horário de almoço da fábrica, deixaria uma escada apoiada
numa das paredes do tal galpão, entraria nele com uma cópia da chave da porta,
tiraria a lona que cobria o protótipo e aguardaria, por alguns minutos, que ele
fosse fotografado. Só não poderia acender a luz do galpão, para não chamar a
atenção da segurança. Nosso repórter e o fotógrafo, munidos de um mapa do
local, conseguiram passar pela portaria alegando que iam à assessoria de
imprensa, esgueiraram-se pelos prédios da administração e da produção e
entraram na área do galpão. A escada estava lá. O fotógrafo subiu, vislumbrou,
mesmo às escuras, o ponto em que estava o carro e bateu várias chapas. Depois,
meticulosamente, foi revelando o filme, milímetro a milímetro, até conseguir
uma nitidez perfeita da imagem. Era um belíssimo protótipo amarelo, aquele em
que a empresa apostava todas as suas fichas para dominar o mercado de
esportivos no Brasil.
A capa ficou linda. O amarelão do
protótipo chamaria a atenção nas bancas. Em grandes letras, anunciávamos o
futuro lançamento. Na reportagem, além de descrevê-lo, contávamos em detalhe a
aventura dos nossos profissionais.
O diretor da revista estava em
férias na Europa. Eu e o secretário de redação estávamos responsáveis pela
revista. De repente, vem da gráfica a notícia: a impressão foi paralisada, por
ordem da alta direção da editora. Ainda estávamos confusos, quando o patrão nos
chamou pra conversar. Resumo: a fábrica também tinha seus espiões, e soubera da
reportagem. Imediatamente percebeu que se fosse publicada seu carrinho de
menino passeador não iria vender nunca mais uma unidade sequer. O presidente da
fábrica no Brasil ligou pessoalmente para o nosso patrão e declarou que, se a
reportagem fosse publicada, cortaria todos os anúncios de todas as revistas da
editora, que não eram poucas. O prejuízo seria grande.
“Pensei em propor tirarmos a
reportagem, desde que eles dobrem a quantidade de anúncios” - disse ele. O
lucro seria grande.
Assustado, olhei para o secretário
de redação, meu amigo, que me olhava assustadíssimo.
Não são muitos, na vida de um
cidadão comum, os momentos em que é possível praticar um ato trágico ou
heroico. Momentos em que se tem a clara noção de estar participando da
história, de alguma história, pelo menos. Que alimentam esse ocasional orgulho
besta de achar que fazemos a diferença, e que é por isso que vale a pena viver.
Aquele era um momento, e eu não quis deixá-lo passar, mesmo porque um dia
poderia contá-lo num livro. Olhei firme – mas sereno – os olhos do patrão e lhe
disse: “Não acho uma boa ideia. A redação não vai aceitar isso”. O patrão
entendeu a situação, e, pra minha surpresa, nem hesitou. Bateu a mão espalmada na
mesa e concluiu: “Então OK, vamos partir pra briga”.
As férias do diretor de redação
foram interrompidas, e houve três dias de duras, depois um pouco mais macias, e
finalmente quase cordiais discussões. A matriz europeia participava das
negociações, por telex. E aconteceu o que eu achava que ia acontecer. A fábrica
estava acostumada com uma imprensa picareta, dócil, que cedia a qualquer
pressão por uns trocados. A imprensa das matérias pagas, das “edições
especiais” patrocinadas por empresas, governos ou mesmo pessoas físicas
poderosas. Não esperava que brigássemos com ela. E, certamente, começou a
pensar nos demais prejuízos que poderia ter com uma eventual guerrinha contra a
editora. Previu, por exemplo, o que seria ter contra ela mais de uma centena de
publicações diferentes, denunciando as 130 falhas de segurança do seu carrinho.
Revistas infantis, juvenis, revistas para a dona de casa, para a mãe, para a
moça que trabalha, para a moça virgem, para o executivo, para outras empresas e
empresários em que personagens de ficção e entrevistados, sem exceção,
descessem a lenha nos seus carrinhos. E foi cedendo, cedendo, cedendo, e cedeu.
A única concessão que acabamos
fazendo – só para eles poderem dizer à matriz europeia que também tínhamos
cedido em alguma coisa – foi não contar, no texto, que as fotos foram feitas na
hora do almoço. O resto foi digerido pela poderosa transnacional. A duras
penas, mas foi. Mais uma vez a Europa se curva.