A
Editora era um belo edifício de seis andares à beira de um largo rio. Eu
trabalhara até de madrugada no fechamento da revista, e cheguei um tanto tarde,
ainda de ressaca do trabalho do dia anterior.
Trazia nas mãos um pacote com cerca de 30 exemplares de um jornal
clandestino, feito pela organização política clandestina marxista à qual eu era
ligado desde os tempos de estudante, com análises do momento político,
denúncias contra a ditadura e outras informações e orientações para os
militantes, simpatizantes e áreas próximas. Ao cruzar os portões de entrada, o
porteiro me avisou, por ordem da redação: “Tem uns caras da Bandeirantes lá em
cima querendo falar com você”. Minha primeira ideia é que seriam colegas da TV
Bandeirantes. Aventei também a hipótese de serem da Operação Bandeirantes, a
central da repressão política, que já torturara e matara um bocado de amigos
meus. Lembrei-me vagamente de alguém ter mencionado a citação do meu nome no
interrogatório de alguém, mas achava impossível que se interessassem por mim,
subversivo de terceira linha, e quase sempre em atividades legais, como as
campanhas sindicais e participação em atos públicos – e apenas como espectador,
na maioria dos casos.
Além
do mais, nos últimos tempos, nem meu carro nem minha casa estavam mais sendo
usados pelos companheiros da organização. Minha mulher e eu nos apavoramos
depois que agentes abordaram nossa frágil e apavorada empregada e a
interrogaram, na rua mesmo, sobre quem ia a minha casa e o que faziam lá
dentro. Até tínhamos retirado da parede da sala o imenso poster do Che, por ser
muito visível da rua. Eu me limitava, na verdade, a distribuir entre amigos e
colegas os jornais clandestinos e a dar uma contribuição mensal em dinheiro
para o sustento de companheiros profissionalizados na organização.
Mais
ou menos tranquilo, portanto, tomei o elevador para o quarto andar, onde ficava
minha redação.
Ao
chegar ao terceiro andar, no entanto, o elevador se abriu e um amigo,
companheiro de organização, ao me ver, arregalou os olhos e me puxou pelo
braço, levando-me pelo corredor até uma sala vazia: “A Oban veio te pegar! O
que você quer fazer? Quer fugir? Quer ir para o exterior?”
Apesar
do susto, consegui fazer um rápido levantamento mental das possibilidades.
Amigos mais comprometidos que eu haviam ficado cerca de seis meses presos.
Talvez fosse o máximo que eu ficaria, e, se torturado, seria menos que eles.
Mudarmo-nos, já com três filhos, para o exterior, iria provocar mais
sofrimento, dificuldades e complicações para toda a família – foi a conta que
fiz.
Joguei
por trás de um grande armário o pacote com os trinta jornais clandestinos, e
subi para ser preso.
Durante
muitos anos, toda vez que eu passava na grande avenida por baixo daquele alto
viaduto, um arrepio varria meu corpo. Memória corporal do medo que senti quando
por ali passamos a caminho da Oban, eu e os dois policiais, num carro pequeno
de cor gelo (do mesmo modelo e cor era o carrinho que fez plantão, em frente à
minha casa, toda noite, por meses, depois dessa prisão). Atrás de nós, o
diretor da revista, que, corajosamente (pois ele próprio estivera preso na
Operação Bandeirantes, dois anos antes), ofereceu-se para me acompanhar, e foi
até a antessala do interrogatório. Não o deixaram passar dali nem permitiram
que ficasse, mas tenho certeza de que sua atitude teve um algum efeito a meu
favor. Não que eu fosse um preso importante. Espero ter deixado claro que
sempre fui meio cagão e que era um subversivo de mero apoio. Para um militante
mixuruca, prisão mixuruca.
Antes
de prosseguir, devo contar que não foi minha primeira prisão. Eu já tinha tido,
anos antes, quando estudante de direito, uma prisão também mixuruca. Encontrara
com colegas de faculdade numa cantina, e me convidaram para ficar com eles. De
repente, propuseram à mesa um pindura, ou seja, sair sem pagar a conta.
Eu e outro colega fomos contra, mas não chegou a haver uma votação. Um saiu
correndo, e os outros o seguiram. Ficamos só eu e o colega dissidente.
Continuamos nosso jantar, comemos sobremesa, tomamos cafezinho e queríamos
pagar somente nossa parte da conta, mas nessa altura o italianão dono da
cantina já havia chamado a polícia. Fomos todos para a delegacia mais próxima,
onde o italianão disse ao delegado que tinha “conseguido segurar” apenas dois
dos delinquentes - nós dois. O delegado nos fichou e mandou para uma cela
subterrânea. Meia hora depois, recebíamos a visita solidária do bando de
colegas que tinham dado o pindura. Horas depois fomos liberados, e meses depois
chegou ao apê onde eu morava com meu irmão uma intimação. Eu estava trabalhando
no jornal, e a intimação foi recebida por minha mãe, que nos visitava por uns
dias. Apavorada e sem me avisar, ela foi à delegacia saber qual seria meu
crime. Mais apavorada ainda, pagou, heroicamente, a conta toda. Como você vê,
não foi um episódio nada edificante, a não ser para minha mãe.
Voltemos
à Oban. Fiquei só um dia lá. Da manhã até aproximadamente meia noite.
Levaram-se primeiro a uma sala
grande, em que primeiro me mandaram tirar o cinto.
Três anos depois, quando foi
publicada a foto de um amigo morto, “enforcado” e “suicidado” na Oban, uma das claras
provas de seu assassínio era o “enforcamento” com seu próprio cinto, alegado no
falso laudo pericial do médico. A primeira coisa que eles faziam era esvaziar
nossos bolsos e tirar-nos o cinto.
Em
seguida me fotografaram, ficharam e identificaram.
O
fotógrafo, um gordo careca e de óculos, uns 40 anos de idade, usando um
discreto bigode, era apenas um fotógrafo, provavelmente deslocado de alguma
função burocrática para aquele trabalho, digamos, mais técnico. Um tempo
depois, passando com meu carro por um bairro próximo, eu o vi esperando um ônibus,
certamente a caminho do trabalho, o burocrata. Noutras circunstâncias, eu lhe
ofereceria carona e pediria uma cópia das fotos. De frente e de perfil.
E
então voltei à outra sala e começaram as intermináveis perguntas.
O que
eles queriam mesmo é encontrar o editor do jornal clandestino que
distribuíamos. Meu interrogatório girou em torno dele. Usaram o velho truque do
interrogador hostil que se reveza com o interrogador bonzinho. O hostil era
mais velho, magro, baixinho e usava um bigodinho. Ouvi quando, na sala ao lado,
os policiais que me levaram relataram a ele como tinha sido minha prisão. Que
haviam me esperado no trabalho, que eu me entregara espontaneamente, que o
diretor da revista me acompanhara.
Mas o
primeiro foi o bonzinho, que me fez perguntas gerais, biográficas,
curriculares, e em seguida indagou se eu sabia do meu amigo editor do jornal –
e eu não sabia nada dele, nos últimos tempos. Eu nem mesmo sabia que era ele
quem fazia o jornal que eu distribuía. Só sabia que ele entrara para a luta
clandestina. Tinha tido dois encontros com ele. Mas nem mesmo isso eu revelei.
Só disse que não tinha noticia dele desde que deixara a revista em que
trabalhava. O bonzinho foi anotando, depois saiu. Voltou dali alguns minutos e
continuou fazendo perguntas, ainda vagas.
De
repente o hostil irrompeu na sala, aos berros: “Não adianta se fazer de
inocente não. Aqui você está morto para o mundo, daqui ninguém te tira e você
não sai sem dizer o que sabe. Você não tem como nos enganar. E você vai ver que
nós já sabemos tudo o que você fez, e até o que não fez!”
E
saiu da sala. O bonzinho balançou a cabeça, como quem diz “esse meu chefe é
foda”, e me disse para ficar calmo e que ele, o bonzinho, estava acreditando em
mim. Pediu-me para falar sobre meu trabalho no jornal clandestino, eu neguei,
disse que tinha visto uns exemplares, mas que sequer sabia quem os distribuía na
Editora. Perguntou-me como conhecera meu amigo, que grau de amizade tínhamos, o
que fazíamos. Dei a ele uma visão ingênua, pacata e legal da organização e do
meu amigo. Disse que nos limitávamos à atividade sindical, onde eu o conhecera,
que eu tinha grande admiração pelo seu idealismo, e que éramos admiradores dos
papas João XXIII e Paulo VI, estudiosos das encíclicas papais Mater et Magistra
e Rerum Novarum, adeptos da doutrina social da igreja, que queríamos que as
injustiças diminuíssem no mundo e outras patacoadas.
O
durão fez então sua entrada principal. Trouxe à sala o militante da minha
organização que coordenava o núcleo dos jornalistas – e que eu nem sabia que
estava preso. Chamou-o por um nome que eu desconhecia (nós nos tratávamos,
aventurescamente, por nomes de guerra, e como ele viera de outra região para
ser nosso orientador e coordenador, a mando da direção nacional, eu até então
não o conhecia por seu nome verdadeiro) e nos submeteu uma acareação.
Meu
coordenador, de sandálias tipo havaianas, animadão, recém-saído do banho e
passando a língua nos dentes (o trocadilho não é proposital – naquele momento
eu não sabia o quanto ele de faqto tinha dado com a língua nos dentes),
aparentemente bem disposto, foi trazido para quebrar minha resistência. Levei
um susto, pois não tinha a menor ideia do que ele contara. Mas a confrontação
acabou sendo bem vinda. Explico.
Toda
vez que eu imaginava a possibilidade de ser preso, me apavorava. Entrava em
ansiedade, acreditando que a agonia pela impossibilidade de sair de um lugar –
inda mais uma cela – me levaria à loucura. Ainda hoje imagino que não
conseguiria aguentar a situação de estar preso, e em certas situações fico mais
propenso a essa ansiedade. Quando me recuperava dos ferimentos do fuzil, ainda
em cadeira de rodas, assistindo a uma simples comédia, “Casamento Grego”, tive
uma crise na cena da prisão de dois personagens. Ao som fechar-se a porta da
cela, arrepiei-me e fiquei sem ar. No hospital, por meses não permiti que
ligassem a TV – mas, então, minha vulnerabilidade, desamparo e impotência não
suportavam nada que sugerisse imposição ou violência.
Mas a
antecipação imaginária da situação é sempre pior que a situação, pois, ao
imaginar, desconhecemos nossos os recursos de defesa. Eles têm limite, sim, mas
são imensamente maiores do que imaginamos.
Se
você ainda não foi preso, não sabe, mas nossa policia não é como a americana
que você vê nos filmes dizendo “you are under arrest, e tudo que você disser
pode ser usado contra você, tem direito a um advogado” etc.. Nesse caso,
tinham-me dito que eu precisava prestar umas informações na 14.a Delegacia –
mas essa era uma delegacia apenas de fachada. Por isso, quando me conduziam
para o interrogatório, após subir as escadarias, me vi na necessidade de
perguntar “me diz uma coisa, eu estou preso?”. “Tá”, disse, monossilabicamente,
mas, pareceu-me, até um tanto solidariamente, o policial que fora me buscar na
Editora.
Ao me
saber preso, imediatamente o pavor foi para algum ponto protegido do meu corpo
e comecei a me adaptar à situação, tentando me sair dela da melhor maneira
possível.
Eu
tinha tido vários desentendimentos com meu coordenador. Achava que ele tinha
pouco cuidado com a nossa segurança, aparecia em minha casa sem avisar,
envolveu minha mulher (que nada tinha a ver com o meu envolvimento) no
transporte de documentos da organização, fez com que ela encontrasse um lugar
para guardar os jornais (que acabou sendo a casa da minha sogra!), e outras
maluquices – coisas que eu ficava sabendo depois, sem ao menos me consultar ou
prevenir. Em reuniões, descrevi esses fatos e critiquei duramente seu
comportamento, mas meus companheiros preferiram aceitar a versão dele, segundo
a qual eu tinha ciúme de sua aproximação com minha mulher.
Frente
a frente com ele, no entanto, afastei essas lembranças, tentando me concentrar
na estratégia possível para a acareação.
O
durão fez com que ele repetisse as informações que já tinha dado a meu
respeito. E as informações relatadas me deram um certo grau de tranquilidade.
Ele apenas tinha dito que algumas vezes eu tinha distribuído o jornal que ele
me levava, que eu me recusava a emprestar o carro para a organização, e que eu
era uma pessoa bem próxima do amigo que eles procuravam. Acreditei, e acho que
estava certo, que se estabeleceu um conluio entre nós, e que ele estava me
protegendo. Afinal de contas, ele sabia que eu era um militante sem maior
importância, e talvez por isso, tendo de dar nomes, ele tivesse dado o meu
nomezinho, entre outros (depois eu soube que 99 pessoas foram presas por
informações dele, e que ele, nosso principal mentor revolucionário, fora preso
numa invasão da polícia a um centro residencial estudantil, no campus de uma
grande universidade).
Durante
a acareação, dediquei-me sobretudo a fingir estar muito preocupado com o fato
de o durão não acreditar no que eu dizia. Demonstrei muita tensão e medo com
isso, alegando que, sem nunca ter feito nada ilegal, nada de grave, corria o
risco de ficar preso, só porque o homem não acreditava no que eu dizia.
Com
alguns longos intervalos, em que eu era deixado sozinho, provavelmente para
checarem meu depoimento com outros, esse jogo durou o dia todo e boa parte da
noite. Passando um pouco da meia noite, eu e eles tivemos uma surpresa.
Vivíamos
na época o bipartidarismo imposto pela ditadura, que criara um partido de
situação, a Arena, e permitira um de oposição, que se tornou uma grande frente
- o MDB, cujo Diretório Regional era
presidido pelo ex-senador Juvenal Lino de Mattos. Lino era tio da minha mulher,
e tínhamos uma amizade fraterna, iniciada nos tempos em que eu era repórter
político e fortalecida depois do meu casamento.
Homem destemido, que participara da Coluna Prestes, atravessando a pé o
território da Amazônia, e que há pouco tempo, quando a ditadura decretara o
confinamento, numa base militar, do ex-presidente da República a quem o senador
e ligado, empunhou uma metralhadora, conseguida não se sabe onde, e foi à casa
do ex-presidente oferecer-se para defendê-lo. Ao saber que eu estava preso, o
velho senador não teve dúvida: foi bater nos portões da Oban e exigir me ver.
Minha mulher ao seu lado. Não duvido que a metralhadora estivesse no fusquinha
azul que ele usou por décadas.
Os
homens avaliaram a situação e concluíram o óbvio. Não valia a pena gastar casa,
comida e paciência com um peixe tão pequeno, e ao mesmo tempo tão amado. Só me
fizeram assinar, semanalmente, a chamada ménage – um livro de presença -, por
dois anos. Era chato, e um tanto amedrontador, pois de vez em quando me
obrigavam a assinar lá dentro, na antessala do interrogatório, tendo de passar
pelo grande estacionamento cheio de carrinhos gelo, subir as escadarias e
responder a perguntas como o que eu andava fazendo, se eu tinha sido procurado
por algum dos meus antigos companheiros, e coisas que tais. E à noite, de vez
em quando, um dos fuscas gelo passava horas em frente a minha casa, com dois
moços dentro.
Mas a
história tem mais um pedacinho, eu diria, surrealista. Pessoa mandada por meu
amigo clandestino em quem eles estavam interessados me pediu um relato
detalhado de meu depoimento. E depois a mesma pessoa me trouxe uma imensa e
raivosa carta do meu amigo, dando-me um tremendo esporro. Vazada na linguagem
maoista em voga na época, ele dizia, em resumo, que meu depoimento tinha sido
uma merda. Que eu tinha dado uma imagem fraca e tímida da organização,
amenizando sua ação, deixando de enfatizar seu caráter revolucionário e a
coragem de seus militantes. Que o que eu disse contribuía, inapelavelmente,
para o atraso do processo revolucionário brasileiro. A carta terminava com uma
severa exigência: como provavelmente eu viria a ser ouvido na auditoria
militar, teria uma chance de corrigir aquele desastroso desvio de conduta
revolucionária. Lá, na auditoria militar, eu deveria dizer aos milicos, com
todas as letras, que nosso objetivo era, sim, conscientizar as massas para a
guerra popular que o proletariado iria desencadear contra os militares e a
burguesia, e que eles jamais poriam a mão no meu amigo, que estava bem longe
dali, sendo o fermento das massas que iriam derrotar o capitalismo e os
exploradores e assassinos do povo. Mais ou menos isso.
Não
fui ouvido pela Justiça Militar. Poderia, é fato, ter utilizado os
mini-interrogatórios da ménage para fazer aquela preciosa correção do
depoimento, e assim o processo revolucionário brasileiro não sofreria aquele
grave atraso. Depois fiz alguns cálculos, e cheguei à conclusão de que, no
trabalho hercúleo, incomensurável, que era fazer a Revolução Brasileira, tarefa
para muitas décadas, meu erro não provocaria um atraso maior do que uns tantos
segundos, no máximo um minuto, tempo que o povo certamente pode esperar.