domingo, 21 de julho de 2013

ATRASANDO A REVOLUÇÃO

A Editora era um belo edifício de seis andares à beira de um largo rio. Eu trabalhara até de madrugada no fechamento da revista, e cheguei um tanto tarde, ainda de ressaca do trabalho do dia anterior.  Trazia nas mãos um pacote com cerca de 30 exemplares de um jornal clandestino, feito pela organização política clandestina marxista à qual eu era ligado desde os tempos de estudante, com análises do momento político, denúncias contra a ditadura e outras informações e orientações para os militantes, simpatizantes e áreas próximas. Ao cruzar os portões de entrada, o porteiro me avisou, por ordem da redação: “Tem uns caras da Bandeirantes lá em cima querendo falar com você”. Minha primeira ideia é que seriam colegas da TV Bandeirantes. Aventei também a hipótese de serem da Operação Bandeirantes, a central da repressão política, que já torturara e matara um bocado de amigos meus. Lembrei-me vagamente de alguém ter mencionado a citação do meu nome no interrogatório de alguém, mas achava impossível que se interessassem por mim, subversivo de terceira linha, e quase sempre em atividades legais, como as campanhas sindicais e participação em atos públicos – e apenas como espectador, na maioria dos casos.
Além do mais, nos últimos tempos, nem meu carro nem minha casa estavam mais sendo usados pelos companheiros da organização. Minha mulher e eu nos apavoramos depois que agentes abordaram nossa frágil e apavorada empregada e a interrogaram, na rua mesmo, sobre quem ia a minha casa e o que faziam lá dentro. Até tínhamos retirado da parede da sala o imenso poster do Che, por ser muito visível da rua. Eu me limitava, na verdade, a distribuir entre amigos e colegas os jornais clandestinos e a dar uma contribuição mensal em dinheiro para o sustento de companheiros profissionalizados na organização.
Mais ou menos tranquilo, portanto, tomei o elevador para o quarto andar, onde ficava minha redação.
Ao chegar ao terceiro andar, no entanto, o elevador se abriu e um amigo, companheiro de organização, ao me ver, arregalou os olhos e me puxou pelo braço, levando-me pelo corredor até uma sala vazia: “A Oban veio te pegar! O que você quer fazer? Quer fugir? Quer ir para o exterior?”
Apesar do susto, consegui fazer um rápido levantamento mental das possibilidades. Amigos mais comprometidos que eu haviam ficado cerca de seis meses presos. Talvez fosse o máximo que eu ficaria, e, se torturado, seria menos que eles. Mudarmo-nos, já com três filhos, para o exterior, iria provocar mais sofrimento, dificuldades e complicações para toda a família – foi a conta que fiz.
Joguei por trás de um grande armário o pacote com os trinta jornais clandestinos, e subi para ser preso.
Durante muitos anos, toda vez que eu passava na grande avenida por baixo daquele alto viaduto, um arrepio varria meu corpo. Memória corporal do medo que senti quando por ali passamos a caminho da Oban, eu e os dois policiais, num carro pequeno de cor gelo (do mesmo modelo e cor era o carrinho que fez plantão, em frente à minha casa, toda noite, por meses, depois dessa prisão). Atrás de nós, o diretor da revista, que, corajosamente (pois ele próprio estivera preso na Operação Bandeirantes, dois anos antes), ofereceu-se para me acompanhar, e foi até a antessala do interrogatório. Não o deixaram passar dali nem permitiram que ficasse, mas tenho certeza de que sua atitude teve um algum efeito a meu favor. Não que eu fosse um preso importante. Espero ter deixado claro que sempre fui meio cagão e que era um subversivo de mero apoio. Para um militante mixuruca, prisão mixuruca.
Antes de prosseguir, devo contar que não foi minha primeira prisão. Eu já tinha tido, anos antes, quando estudante de direito, uma prisão também mixuruca. Encontrara com colegas de faculdade numa cantina, e me convidaram para ficar com eles. De repente, propuseram à mesa um pindura, ou seja, sair sem pagar a conta. Eu e outro colega fomos contra, mas não chegou a haver uma votação. Um saiu correndo, e os outros o seguiram. Ficamos só eu e o colega dissidente. Continuamos nosso jantar, comemos sobremesa, tomamos cafezinho e queríamos pagar somente nossa parte da conta, mas nessa altura o italianão dono da cantina já havia chamado a polícia. Fomos todos para a delegacia mais próxima, onde o italianão disse ao delegado que tinha “conseguido segurar” apenas dois dos delinquentes - nós dois. O delegado nos fichou e mandou para uma cela subterrânea. Meia hora depois, recebíamos a visita solidária do bando de colegas que tinham dado o pindura. Horas depois fomos liberados, e meses depois chegou ao apê onde eu morava com meu irmão uma intimação. Eu estava trabalhando no jornal, e a intimação foi recebida por minha mãe, que nos visitava por uns dias. Apavorada e sem me avisar, ela foi à delegacia saber qual seria meu crime. Mais apavorada ainda, pagou, heroicamente, a conta toda. Como você vê, não foi um episódio nada edificante, a não ser para minha mãe.


Voltemos à Oban. Fiquei só um dia lá. Da manhã até aproximadamente meia noite.
Levaram-se primeiro a uma sala grande, em que primeiro me mandaram tirar o cinto.
Três anos depois, quando foi publicada a foto de um amigo morto, “enforcado” e “suicidado” na Oban, uma das claras provas de seu assassínio era o “enforcamento” com seu próprio cinto, alegado no falso laudo pericial do médico. A primeira coisa que eles faziam era esvaziar nossos bolsos e tirar-nos o cinto.
Em seguida me fotografaram, ficharam e identificaram.
O fotógrafo, um gordo careca e de óculos, uns 40 anos de idade, usando um discreto bigode, era apenas um fotógrafo, provavelmente deslocado de alguma função burocrática para aquele trabalho, digamos, mais técnico. Um tempo depois, passando com meu carro por um bairro próximo, eu o vi esperando um ônibus, certamente a caminho do trabalho, o burocrata. Noutras circunstâncias, eu lhe ofereceria carona e pediria uma cópia das fotos. De frente e de perfil.

E então voltei à outra sala e começaram as intermináveis perguntas.
O que eles queriam mesmo é encontrar o editor do jornal clandestino que distribuíamos. Meu interrogatório girou em torno dele. Usaram o velho truque do interrogador hostil que se reveza com o interrogador bonzinho. O hostil era mais velho, magro, baixinho e usava um bigodinho. Ouvi quando, na sala ao lado, os policiais que me levaram relataram a ele como tinha sido minha prisão. Que haviam me esperado no trabalho, que eu me entregara espontaneamente, que o diretor da revista me acompanhara.
Mas o primeiro foi o bonzinho, que me fez perguntas gerais, biográficas, curriculares, e em seguida indagou se eu sabia do meu amigo editor do jornal – e eu não sabia nada dele, nos últimos tempos. Eu nem mesmo sabia que era ele quem fazia o jornal que eu distribuía. Só sabia que ele entrara para a luta clandestina. Tinha tido dois encontros com ele. Mas nem mesmo isso eu revelei. Só disse que não tinha noticia dele desde que deixara a revista em que trabalhava. O bonzinho foi anotando, depois saiu. Voltou dali alguns minutos e continuou fazendo perguntas, ainda vagas.
De repente o hostil irrompeu na sala, aos berros: “Não adianta se fazer de inocente não. Aqui você está morto para o mundo, daqui ninguém te tira e você não sai sem dizer o que sabe. Você não tem como nos enganar. E você vai ver que nós já sabemos tudo o que você fez, e até o que não fez!”
E saiu da sala. O bonzinho balançou a cabeça, como quem diz “esse meu chefe é foda”, e me disse para ficar calmo e que ele, o bonzinho, estava acreditando em mim. Pediu-me para falar sobre meu trabalho no jornal clandestino, eu neguei, disse que tinha visto uns exemplares, mas que sequer sabia quem os distribuía na Editora. Perguntou-me como conhecera meu amigo, que grau de amizade tínhamos, o que fazíamos. Dei a ele uma visão ingênua, pacata e legal da organização e do meu amigo. Disse que nos limitávamos à atividade sindical, onde eu o conhecera, que eu tinha grande admiração pelo seu idealismo, e que éramos admiradores dos papas João XXIII e Paulo VI, estudiosos das encíclicas papais Mater et Magistra e Rerum Novarum, adeptos da doutrina social da igreja, que queríamos que as injustiças diminuíssem no mundo e outras patacoadas.
O durão fez então sua entrada principal. Trouxe à sala o militante da minha organização que coordenava o núcleo dos jornalistas – e que eu nem sabia que estava preso. Chamou-o por um nome que eu desconhecia (nós nos tratávamos, aventurescamente, por nomes de guerra, e como ele viera de outra região para ser nosso orientador e coordenador, a mando da direção nacional, eu até então não o conhecia por seu nome verdadeiro) e nos submeteu uma acareação.
Meu coordenador, de sandálias tipo havaianas, animadão, recém-saído do banho e passando a língua nos dentes (o trocadilho não é proposital – naquele momento eu não sabia o quanto ele de faqto tinha dado com a língua nos dentes), aparentemente bem disposto, foi trazido para quebrar minha resistência. Levei um susto, pois não tinha a menor ideia do que ele contara. Mas a confrontação acabou sendo bem vinda. Explico.
Toda vez que eu imaginava a possibilidade de ser preso, me apavorava. Entrava em ansiedade, acreditando que a agonia pela impossibilidade de sair de um lugar – inda mais uma cela – me levaria à loucura. Ainda hoje imagino que não conseguiria aguentar a situação de estar preso, e em certas situações fico mais propenso a essa ansiedade. Quando me recuperava dos ferimentos do fuzil, ainda em cadeira de rodas, assistindo a uma simples comédia, “Casamento Grego”, tive uma crise na cena da prisão de dois personagens. Ao som fechar-se a porta da cela, arrepiei-me e fiquei sem ar. No hospital, por meses não permiti que ligassem a TV – mas, então, minha vulnerabilidade, desamparo e impotência não suportavam nada que sugerisse imposição ou violência.
Mas a antecipação imaginária da situação é sempre pior que a situação, pois, ao imaginar, desconhecemos nossos os recursos de defesa. Eles têm limite, sim, mas são imensamente maiores do que imaginamos.
Se você ainda não foi preso, não sabe, mas nossa policia não é como a americana que você vê nos filmes dizendo “you are under arrest, e tudo que você disser pode ser usado contra você, tem direito a um advogado” etc.. Nesse caso, tinham-me dito que eu precisava prestar umas informações na 14.a Delegacia – mas essa era uma delegacia apenas de fachada. Por isso, quando me conduziam para o interrogatório, após subir as escadarias, me vi na necessidade de perguntar “me diz uma coisa, eu estou preso?”. “Tá”, disse, monossilabicamente, mas, pareceu-me, até um tanto solidariamente, o policial que fora me buscar na Editora.


Ao me saber preso, imediatamente o pavor foi para algum ponto protegido do meu corpo e comecei a me adaptar à situação, tentando me sair dela da melhor maneira possível.
Eu tinha tido vários desentendimentos com meu coordenador. Achava que ele tinha pouco cuidado com a nossa segurança, aparecia em minha casa sem avisar, envolveu minha mulher (que nada tinha a ver com o meu envolvimento) no transporte de documentos da organização, fez com que ela encontrasse um lugar para guardar os jornais (que acabou sendo a casa da minha sogra!), e outras maluquices – coisas que eu ficava sabendo depois, sem ao menos me consultar ou prevenir. Em reuniões, descrevi esses fatos e critiquei duramente seu comportamento, mas meus companheiros preferiram aceitar a versão dele, segundo a qual eu tinha ciúme de sua aproximação com minha mulher.
Frente a frente com ele, no entanto, afastei essas lembranças, tentando me concentrar na estratégia possível para a acareação.
O durão fez com que ele repetisse as informações que já tinha dado a meu respeito. E as informações relatadas me deram um certo grau de tranquilidade. Ele apenas tinha dito que algumas vezes eu tinha distribuído o jornal que ele me levava, que eu me recusava a emprestar o carro para a organização, e que eu era uma pessoa bem próxima do amigo que eles procuravam. Acreditei, e acho que estava certo, que se estabeleceu um conluio entre nós, e que ele estava me protegendo. Afinal de contas, ele sabia que eu era um militante sem maior importância, e talvez por isso, tendo de dar nomes, ele tivesse dado o meu nomezinho, entre outros (depois eu soube que 99 pessoas foram presas por informações dele, e que ele, nosso principal mentor revolucionário, fora preso numa invasão da polícia a um centro residencial estudantil, no campus de uma grande universidade).
Durante a acareação, dediquei-me sobretudo a fingir estar muito preocupado com o fato de o durão não acreditar no que eu dizia. Demonstrei muita tensão e medo com isso, alegando que, sem nunca ter feito nada ilegal, nada de grave, corria o risco de ficar preso, só porque o homem não acreditava no que eu dizia.
Com alguns longos intervalos, em que eu era deixado sozinho, provavelmente para checarem meu depoimento com outros, esse jogo durou o dia todo e boa parte da noite. Passando um pouco da meia noite, eu e eles tivemos uma surpresa.
Vivíamos na época o bipartidarismo imposto pela ditadura, que criara um partido de situação, a Arena, e permitira um de oposição, que se tornou uma grande frente -  o MDB, cujo Diretório Regional era presidido pelo ex-senador Juvenal Lino de Mattos. Lino era tio da minha mulher, e tínhamos uma amizade fraterna, iniciada nos tempos em que eu era repórter político e fortalecida depois do meu casamento.  Homem destemido, que participara da Coluna Prestes, atravessando a pé o território da Amazônia, e que há pouco tempo, quando a ditadura decretara o confinamento, numa base militar, do ex-presidente da República a quem o senador e ligado, empunhou uma metralhadora, conseguida não se sabe onde, e foi à casa do ex-presidente oferecer-se para defendê-lo. Ao saber que eu estava preso, o velho senador não teve dúvida: foi bater nos portões da Oban e exigir me ver. Minha mulher ao seu lado. Não duvido que a metralhadora estivesse no fusquinha azul que ele usou por décadas.
Os homens avaliaram a situação e concluíram o óbvio. Não valia a pena gastar casa, comida e paciência com um peixe tão pequeno, e ao mesmo tempo tão amado. Só me fizeram assinar, semanalmente, a chamada ménage – um livro de presença -, por dois anos. Era chato, e um tanto amedrontador, pois de vez em quando me obrigavam a assinar lá dentro, na antessala do interrogatório, tendo de passar pelo grande estacionamento cheio de carrinhos gelo, subir as escadarias e responder a perguntas como o que eu andava fazendo, se eu tinha sido procurado por algum dos meus antigos companheiros, e coisas que tais. E à noite, de vez em quando, um dos fuscas gelo passava horas em frente a minha casa, com dois moços dentro.
Mas a história tem mais um pedacinho, eu diria, surrealista. Pessoa mandada por meu amigo clandestino em quem eles estavam interessados me pediu um relato detalhado de meu depoimento. E depois a mesma pessoa me trouxe uma imensa e raivosa carta do meu amigo, dando-me um tremendo esporro. Vazada na linguagem maoista em voga na época, ele dizia, em resumo, que meu depoimento tinha sido uma merda. Que eu tinha dado uma imagem fraca e tímida da organização, amenizando sua ação, deixando de enfatizar seu caráter revolucionário e a coragem de seus militantes. Que o que eu disse contribuía, inapelavelmente, para o atraso do processo revolucionário brasileiro. A carta terminava com uma severa exigência: como provavelmente eu viria a ser ouvido na auditoria militar, teria uma chance de corrigir aquele desastroso desvio de conduta revolucionária. Lá, na auditoria militar, eu deveria dizer aos milicos, com todas as letras, que nosso objetivo era, sim, conscientizar as massas para a guerra popular que o proletariado iria desencadear contra os militares e a burguesia, e que eles jamais poriam a mão no meu amigo, que estava bem longe dali, sendo o fermento das massas que iriam derrotar o capitalismo e os exploradores e assassinos do povo. Mais ou menos isso.

Não fui ouvido pela Justiça Militar. Poderia, é fato, ter utilizado os mini-interrogatórios da ménage para fazer aquela preciosa correção do depoimento, e assim o processo revolucionário brasileiro não sofreria aquele grave atraso. Depois fiz alguns cálculos, e cheguei à conclusão de que, no trabalho hercúleo, incomensurável, que era fazer a Revolução Brasileira, tarefa para muitas décadas, meu erro não provocaria um atraso maior do que uns tantos segundos, no máximo um minuto, tempo que o povo certamente pode esperar.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

INIMIGOS DE NOEL

Tenho uma certa bronca de críticos de cinema. Quando criança e adolescente (no cinema, continuo sendo), via tudo quanto é filme que passava na minha cidade. Japoneses, franceses, argentinos, mexicanos, brasileiros, americanos. E o jornal local não tinha crítico de cinema. Era ótimo. Meu único trabalho era consultar o jornal para saber que filmes ainda não tinha visto. A partir dos 17 anos, já na matrópole, meus critérios de escolha passaram a ser sobretudo geográficos (prefiro os filmes a que possa ir a pé). Percebo, é claro, quando um filme é ruim. Mas isso não quer dizer que não goste dele, pois sentar-me numa poltrona confortável, apagarem a luz e passarem um filme para mim ainda é o grande prazer que conta. E não quero que os críticos atrapalhem isso (sou muito influenciável), com seus brilharecos e abobrinhas sobre o trabalho do diretor, do fotógrafo, do roteirista e dos atores. Não quero que façam comigo o que a avó de um conhecido fez com ele.
É bom homem, alto, forte, rígido e de uma inocente generosidade. Trabalha como assistente social. Conheci-o durante um workshop de psicoterapia corporal. Um de seus traços de personalidade é a impossibilidade total de sentir raiva. Coisas desagradáveis, horríveis mesmo, foram ditas a ele por participantes do workshop, e ele respondia com cândidos agradecimentos. Durante o workshop, trouxe uma lembrança de infância. Aos cinco anos de idade, na véspera de Natal, sua veneranda avó o chamou ao seu quarto e, como se lhe desse um grande presente, revelou, em segredo, que Papai Noel não existia. E mostrou todos os presentes comprados pela família, que à noite iriam ser distribuídos a ele e às outras crianças. Foi o pior Natal da vida dele. Ele era o único a ter o privilégio daquela verdade maldita, que deveria guardar consigo.
O condutor do workshop sugeriu-lhe deitar num colchão e espernear, gritando para a avó: “Papai Noel existe!”. À noite, compramos uma caixa de bombons e deixamos na porta do seu quarto, em nome de Papai Noel.
Lembrei-me dele ao ler críticas “engajadas” a uma oscarizante e oscarizada tragicomédia  que ganhou um Oscar. Os críticos desancam o “individualismo” de um  personagem-pai, que só se preocupa em fazer o filho feliz, em meio aos horrores de um campo de concentração e suas câmaras de extermínio de adultos e crianças.
Afinal, perguntam os críticos, que mensagem é essa? Seria essa a melhor maneira de educar um filho? Mentir a ele sobre o mundo, torná-lo despreparado para as agruras que terá de enfrentar na vida? Incentivar nele o egoísmo, o hábito de pensar em si, independentemente do sofrimento alheio? Ensinar-lhe o “salve-se quem puder”, deixando de lado as virtudes da solidariedade e do companheirismo?
Nunca inventei papai noel para os meus filhos, nem cegonha, nem coelhinho da páscoa, mas, mesmo em termos pedagógicos, o fato é que haveria muitos argumentos em favor de um pai como o do filme. Estudos baseados em crianças mandadas para creches, durante a guerra, mostram que a qualidade do colo, do carinho e do afeto recebido é que determina se a criança será um adulto solidário ou egoísta: quem é amado aprende a dar amor. Mas, além disso, uma obra de arte tem todo o direito de não querer dar lições de psicanálise, educação infantil ou luta antinazista. Sua única pretensão pode ser simplemente falar sobre até onde pode ir o extremo e ingênuo amor de um pai.

Num filme que nunca seria feito pelos valentes inimigos do Papai Noel.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

PATERNIDADE IRRESPONSÁVEL

Desde criança eu queria ser pai. De muitos filhos. Admirava famílias grandes, casas cheias de quartos com beliches, monte de gente falando na hora do jantar, bandejas correndo de mão em mão pela mesa imensa. Olhava para cada menina como uma potencial mãe dos meus filhos.
Depois descobri o sexo, atividade que sempre me deu muito prazer, e centrei-me nesse prazer. Nada podia ser melhor do que fazer sexo, sobretudo quando apaixonado. Era tão bom que desviava minha atenção do fato de que todo aquele prazer era exatamente o que fazia com que homens e mulheres se tornassem pais e mães. Até que minha namorada ficou grávida, e a relação entre um e outro desejo se estabeleceu com contundente clareza.
Grana pouca, 23 anos eu e ela 22. Em nenhum momento duvidamos de que a notícia era maravilhosa e casamos praticamente sem pensar. No dia do casamento, três meses de gravidez, o vestido dela, na altura dos seios, apresentava pinguinhos de leite. Foi para mim um bom sinal. Certamente teríamos uma substanciosa família, grande, feliz e bem alimentada. Paramos em dois casais de filhos. Não era a família grandona que eu imaginara antes, mas estava de bom tamanho para os tempos que corriam.
Nunca me senti realmente preparado para a paternidade ou para a vida (me aventurei, com sucesso, em três profissões, mas às vezes penso que minha verdadeira vocação e realização seria tocar harpa paraguaia e cantar guarânias em bares noturnos pesadamente boêmios). Entre culpas, medos e alegrias, porém, acho que tenho me saído razoavelmente bem.
Ninguém ensina ninguém a ser pai. Aprendizado de pai é transferência, com saltos de qualidade, de uma situação para outra. Fui aprendendo aos poucos, pensando e repensando a experiência e  imitando, mesmo sem querer, a referência de pai que tinha. Do meu pai recebi, mais que tudo, um afeto sem limites.
De escola meu pai só teve o primeiro ano primário. Filho de colono de fazenda, cresceu sendo peão para tudo, lavrador, cozinheiro, mecânico, motorista, marceneiro e lenhador, serrando troncos, produzindo e carregando dormentes para construção de ferrovia. À noite, à luz de velas, aprendia solitariamente em quartos de pensão, lendo livros de matemática, português (um velho e excelente dicionário encadernado por meu pai até hoje está comigo) e inglês. Aprendeu tudo sobre café e foi, já jovem, ser provador e classificador, e mais tarde, final da década de 40, casado e com três filhos, gerente de empresas exportadoras. Conheci as belas mãos de meu pai já delicadas, quentes e macias. Depois do jantar, eu colava o ouvido ao violão para ouvi-lo dedilhar, doce e suavemente, velhas valsas e sambas. Não havia calos na mão que tocava meu peito, enquanto ele me contava histórias e me cobria nas noites de frio. Ele se foi há muito tempo, mas ainda sinto sua mão. É ela que me acalma, protege e conforta nos momentos de angústia, tristeza e desamparo.
A certeza desse afeto é que me deu força para, aos 17 anos, sair de casa e ir sozinho para a metrópole, onde não conhecia ninguém.
Quando me tornei pai, tudo o que queria era conseguir tocar meus filhos com aquela mesma mão. Eu sabia que, para ter filhos felizes, só precisaria tocá-los daquela forma. O resto era detalhe.
Acho engraçado dizerem que pai não pode ser amigo. Pode, sim. Meu pai foi, e eu nunca tive dúvidas em querer ser grande amigo dos meus filhos. Amigo de verdade não é o que é conivente com erros e deixa o outro fazer bobagem e caminhar torto. Amigo briga, até rompe a amizade quando vê o amigo estragando a própria vida. Um dia o amigo volta e agradece. Pai tem de ser amigo assim.
Muitas vezes me perguntei se gostava mais de um filho que de outro. Pergunta que todo mundo faz aos pais, achando que preferência é inevitável. Não vejo diferença entre os meus amores por eles. Vejo, sim, que em cada tempo estou mais próximo de um. Ou porque estou me identificando mais com o que ele está vivendo, ou porque acho que naquele momento precisa mais de mim - ou eu dele.
Sempre confiei neles. Sem nenhum esforço. Estranho pai que desconfia, inquire, vigia e investiga. Isso não é cuidar. Cuidar é dar opinião, é defender de todo e qualquer ataque, é estar solidário, pronto para ajudar, mas respeitando a autonomia do outro e o pensamento diferente.
Culpa, só sinto pelos momentos em que fui pouco atento, ou interferi indevidamente na vida deles. Momentos em que não percebi ou não valorizei o sofrimento por que passavam, ou impus decisões contra a vontade deles. Momentos em que agi intempestiva ou agressivamente, perdi a cabeça. Momentos em que descarreguei neles raivas que trazia de outras pessoas. Mas também aprendi que se esses erros não são o nosso padrão de comportamento, não têm consequências a longo prazo. Diluem-se em meio às situações em que predominou a compreensão, a confiança, o afeto.
Menino, reconheço, dá muito mais trabalho que menina. Menino briga em festa, bebe de cair, experimenta droga, picha muros, anda de moto, faz besteira, faz bagunça, vai preso. Deixa você bravo, preocupado, com a pulga atrás da orelha. Menina tem juízo. Nunca perguntei a nenhuma das meninas aonde iam, com quem iam, que hora voltariam. Sempre soube que elas tinham mais juízo que eu, que sou menino. Aos meninos eu também não perguntava, mas com eles o resultado nem sempre foi bom. Devia ter perguntado. Errei.
Nosso maior sofrimento, no entanto, foi quando, depois de 21 anos, eu e minha mulher nos separamos. Não avaliei o quanto seria difícil. E não havia nada a fazer. Foi quando descobri que sempre há algo a fazer, sim. No caso, era chorar. Não esconder o que eu sentia, nem julgar a raiva ou a tristeza de cada um deles. Sofrer e chorar juntos, pelo inevitável, pela impotência, pelo caminho que a vida tomava. Dessa crise, acredito, saímos todos fortalecidos. Em diferentes momentos, morei sozinho, morei com os quatro, com dois, com uma das meninas e, finalmente, moro sozinho de novo. Hoje, além de namorar – sou um velho bem animadinho – minha grande diversão são meus netos.
Ainda tenho comigo a grandiosa sensação do dia em que nasceu meu primeiro neto. Se ser pai nos traz a ilusão de sermos pequenos deuses, pelo milagre que é ver surgir de nós uma vida, ser avô faz de nós deuses maiores, pois demonstra que a vida que geramos é outro deus!
Um alerta: muito cuidado quando você ouvir um avô dizendo que seu neto é a coisa mais linda do mundo. Não acredite. Ele está sendo parcial, muito pouco objetivo, influenciado por essa falsa ideia de que produziu milagres. Nenhum deles pode ter originado a coisa mais linda do mundo, pois a verdadeira coisa mais linda do mundo são os meus netos.
(republicado a pedidos - eu mesmo pedi)

segunda-feira, 15 de julho de 2013

PELVE FUZILADA

Hoje é apenas esta bengala, mas já tive de andar de cadeira de rodas, depois de andador, depois muletas canadenses. Sim, além da bengala há essa órtese na perna esquerda, para que eu possa firmar o pé no chão e ele não fique pendurado.
Aposentado, como você já sabe, decidi morar numa ilha marítima. Nela sobrevivo bem com o dinheiro da aposentadoria e ainda dá para viajar de vez em quando para, na época, ver meus filhos, e mais tarde ver também os netos, que vão aos poucos aumentando em número.
O primeiro mês na ilha teve, como dificuldade, a incerteza da adaptação sem os vícios da cidade grande. A ilha não tem uma cidade. Sendo capital do estado, tem um centro com muito congestionamento de trânsito, funcionário público, áreas históricas, alguns bares e restaurantes. No mais, aldeias de pescadores com os quais se pode conversar bastante sobre peixes, redes, mar, baleias e novelas de TV. Ah, sim, outro tema possível é o preço de peças para descarga de privada, borrachinhas de torneira, fossas sépticas e caixas de gordura.  E punto.  As aldeias não se intercomunicam e competem entre si. Muitos de seus habitantes morrem sem nunca ter ido ao centro. Inevitável para mim não me sentir um peixe fora da água – e, talvez por isso mesmo, passei meu primeiro mês na ilha praticamente dentro da água, apesar do frio que fazia naquele junho.
No último dia de junho, eu tinha de fazer uma viagem de trabalho para uma cidade bem distante. Como, coincidentemente, um grande amigo iria comemorar seu aniversário naqueles dias, na cidade maravilhosa – que fica a meio caminho do meu destino - decidi ir às festas do aniversário, que durariam dois dias. Com muita música (meu amigo é um grande sambista), boas bebidas entre fermentados e destilados, comidas fantásticas (meu amigo é especialista em moquecas, feijoadas e outras delícias) e gente linda (outra especialidade dele), tudo era alegria.
Só pude, no entanto, participar do primeiro dia de festa. Num bairro próximo, jovens soldados de traficantes postaram-se à margem de uma avenida pela qual deveríamos passar, ao deixar a festa. E passaram a descarregar seus fuzis em direção ao outro lado da avenida. Talvez eles quisessem atingir as casas que havia do outro lado. Talvez eles quisessem atingir colegas de profissão com os quais disputavam clientes ou território. Talvez aquela fosse apenas sua diversão de fim de semana.  Já era tarde da noite, e as balas traçantes desenhavam contra o céu escuro suas linhas interrompidas. De longe, as confundimos com retardatários fogos juninos, lançados por crente de santo feliz por  graça concedida. Chegando aos belos desenhos, vinte minutos depois de sair do jantar do aniversário, nosso carro foi atingido pela tal bala perdida de fuzil. Cruzando meu quadril, ela destruiu, pela ordem: a área dos trocânteres, logo abaixo da cabeça do fêmur; os dois ramos (fibular e tibial) do ciático (feixe de nervos responsáveis por conduzir os comandos de sensibilidade e de movimentos das pernas); o osso púbico; dez centímetros de uretra; e um pedacinho da próstata. O impacto foi violento. Mais que dor, sofri uma avassaladora fraqueza, semelhante ao sufoco que nos domina se, ao cair, batemos fortemente o cóccix. Levei a mão à coxa esquerda. O sangue jorrava.
Um ano depois, o dirigente de uma oenegê que faz trabalhos espiritualistas motivacionais em favelas me convida pra um jantar, em sua casinha simples na praia onde moro. Surpresa: ele chamou, sem me avisar, várias pessoas interessantes para que eu contasse a elas a grande lição de vida daquela rica experiência, agonizante por meses, paralisado numa cama, dores, dores, cirurgias, cirurgias (total: 16), dependendo de uma cuidadora até para banhar-me, mesmo depois das temporadas hospitalares.
Fui bem mal educado com o dirigente da oenegê e seus cândidos convidados. Disse-lhes que não recomendo tiro de fuzil para ninguém, e que podemos muito bem passar sem essa bela lição de vida, cacete.
Na cidade maravilhosa, o melhor hospital local e a maioria de seus médicos quase me mataram. Só um deles demonstrou dedicação, atenção real e competência. Baixinho, tímido, quase não sorria, mas me falava a verdade, por grave que fosse, e me orientava sobre o que ocorria. Aconselhou-me a cair fora de lá assim que pudesse.
Enquanto não conseguia fugir para a grande metrópole, só sobrevivi  graças a minha família e a afetuosos e heroicos paramédicos do hospital. Alguns passaram noites ao meu lado, ora à procura de veias para a medicação, ora tratando as insistentes escaras e dores, ora me confortando nos desesperos maiores. Tive o privilégio de ser cuidado e três vezes operado no mais prestigiado hospital daquela cidade maravilhosa. Um inferno.
Mês e meio depois, embora já na grande metrópole, bem cuidado e amparado o que pesava era a solidão. Ainda totalmente dependente para todas as minhas necessidades, e ainda sem saber se voltaria a andar, em um ano fiz mais cinco cirurgias. Uma reconstituição da uretra, duas tentativas de recanalização dos ramos do ciático, uma para retirada de uma sonda vesical que por razão desconhecida estava apaixonada e queria uma ligação indissolúvel com minha bexiga, e duas para debelar debridamento – limpar o trajeto da bala de detritos que ela trouxera ao vir procurando minha coxa, mais algumas bactérias determinadas a guerrear com meu corpo. Nos intervalos entre elas, passei a maioria de minhas horas lendo sofregamente e observando o céu e alguns últimos andares de edifícios. Das 6 da manhã  à noite, eu sabia a vida daquela paisagem. O movimento dos pombos, a cabeça do velhinho que observava o dia por alguns minutos e jogava ao ar sua bituca de cigarro de palha, as primeiras janelas acesas, as últimas apagadas. Não poucas vezes, examinei detidamente a possibilidade de, arrastando-me, conseguir chegar à janela, assomar ao parapeito e deixar-me cair daquele décimo andar. Mas havia uma espécie de curiosidade em mim. Um lado meu que de um ponto privilegiado observava tudo o que se passava comigo e queria saber no que ia dar. Desse mesmo ponto e num certo grau, em me senti privilegiado. Escolhido. Havia um certo narcisismo nisso. Um lado que me achava bárbaro. Forte. Imaginava as pessoas dizendo, umas para as outras, “mas que homem maravilhoso, passar por tudo isso sem perder a força, o bom humor. Que prodígio, que fortaleza!”.

Outra dúvida que havia era se eu conseguiria voltar a fazer sexo. Voltei. Não com os momentos de glória do passado, mas a turma gosta, e eu também.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

NAMOROS DEFEITUOSOS

Meu noivo tem se envolvido com transações ilícitas, pagamento de propinas e troca de favores dentro de instituições públicas. Como posso separar a nossa vida pessoal dessas atividades que, se descobertas, podem comprometer nosso futuro?
Ninguém consegue tal separação entre vida pessoal e profissional. Há um grau de concessões que todos temos de fazer para manter empregos e relacionamentos, mas cada um sabe até onde pode ir sem comprometer o próprio senso moral e, em última análise, a saúde, pois os conflitos entre comportamento e emoção ocorrem em nosso corpo. Há um descompasso de valores pessoais entre você e seu namorado, e os seus são os mais saudáveis. Converse longamente com ele sobre as experiências que ambos tiveram na vida, para entender por que o homem que você ama, e que a ama, está fazendo essa escolha. Assim ele terá a chance de rever seu comportamento e perceber que pode encontrar outro trabalho ou emprego – no qual poderá ganhar menos, mas terá mais bem estar, saúde e (com você) um relacionamento mais gratificante.

Perdi meu pai quando criança e aprendi a ser muito independente. Cuido do carro, troco pneu, vou ao mecânico e meu namorado não ajuda em nada. Não ligo, mas minha mãe diz que ele não consegue acompanhar minha força.
Provavelmente, sua mãe está preocupada com o futuro da relação, e nisso ela tem razão. Caso vocês pretendam evoluir do namoro para uma relação mais profunda e, eventualmente, para um casamento, esse descompasso entre você e seu namorado terá de ser atenuado. Você parece ter muito orgulho de não precisar de ninguém, e até agora viveu bem assim. Ótimo. Não há nada errado em ser forte. Mas ninguém é realmente forte o tempo todo, e nisso não há também nada de errado. Todos nós passamos por momentos em que precisamos de ajuda, e é saudável reconhecer essa necessidade e pedir, ou mesmo exigir, que nosso parceiro nos dê apoio. Ele pode aprender a ser mais forte e você a respeitar sua própria vulnerabilidade. Observe melhor e mais atentamente seus sentimentos e perceberá em que situações quer ser cuidada e ajudada. Mesmo que no começo seja difícil, por causa do conflito entre a necessidade e o orgulho, peça atenção e ajuda. Com isso estará construindo uma relação em que os direitos serão iguais, a convivência mais harmônica e haverá menos cobrança de parte a parte.

Tenho 35 anos e namoro um rapaz de vinte. Tenho minha casa, meu trabalho, sou tranquila e experiente. Ele, ao contrário, ainda estuda, depende dos pais, gosta de baladas e é infantil. O maior problema: não posso ter filhos, e ele sonha em ser pai. Sexualmente nos entendemos muito bem, mas temo o futuro, embora ele diga que nunca amou tanto assim e eu não consiga me imaginar sem ele. Vale a pena investir nessa relação?

Cuidado: se você não pode ter filhos, corre o risco de fazer do seu namorado um filho. E nesse caso, a relação só funcionará bem enquanto ele não se tornar adulto. Por outro lado, nada impede que a relação perdure, aparadas as evidentes arestas – o impasse ter ou não filhos, por exemplo, tem de ser resolvido, e só se resolverá se ele, de verdade, desistir de ser pai. Não passem por cima dessa e das outras diferenças. Atentem ambos também para o fato de que ele vai mudar muito na medida em que se realize profissionalmente e amadureça emocionalmente. É provável que, dos 35 aos 50, você mude muito menos do que ele dos 20 aos 35. Você, ele e o relacionamento (nessa ordem) terão de saber se adaptar a essas mudanças. É claro que haverá também certa dose de torcida contra por parte de alguns amigos e parentes, pois ainda há bastante preconceito contra a união da mulher madura com um jovem – e ele precisa, mais do que você, estar bem consciente do que quer e preparado para não se deixar influenciar.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

UM SOGRO NA SALA


Desde que perdeu o emprego e se separou da mulher, meu sogro vive grudado no meu noivo. Pretendemos casar em breve, mas me sinto insegura. Muitas vezes nem conseguimos conversar, pois o pai dele está sempre junto e até já cogitou morar com a gente. Não quero criar atritos, mas o limite entre nós e ele está sendo extrapolado.

Seu sogro passou por duas consideráveis perdas, está obviamente precisando de apoio e procura quem está próximo – o filho. Durante um tempo, é natural que vocês o tenham ajudado, mas é claro que precisam de espaço e tranquilidade para construir a vida que querem juntos. Para ele, também será saudável sair dessa dependência e não se acomodar no papel de vítima. É bem provável que ele também queira o bem de vocês e não tenha clareza do que está acontecendo. Se seu noivo, por outro lado, estiver acostumado a cuidar exageradamente do pai, talvez tenha dificuldade para perceber a necessidade de alterar essa relação. Por isso, suas primeiras conversas devem ser com ele, até que ambos se entendam sobre como conversar com o pai dele. Quando você e seu futuro marido estiverem de acordo sobre que ajuda podem dar e com que limites, será mais fácil falar e estabelecer uma nova rotina na relação com seu sogro. O ideal é que ele possa entender isso. Para tanto, dêem-lhe tempo para falar do que sente e do que quer. Deixem clara a vontade de apoiá-lo, mas também o espaço de que precisam para vocês. Talvez, de início, ocorra um certo grau do atrito que você quer evitar, mas ele aos poucos será superado, quando seu sogro ficar consciente de que vocês não o estão rejeitando.

Na casa do meu namorado, sexo e amor são assuntos tabus. Ele acha que demonstrar afeto é sinal de fraqueza e que se ele fizer isso vou acabar abusando e talvez traí-lo. Quando reclamo da falta de carinho, diz que é coisa da minha cabeça e que eu deveria gostar dele do jeito que é. Eu gosto, mas não me sinto amada quando não sou acariciada.
Infelizmente, não há muita coisa que você possa fazer. A dificuldade, e mesmo, muitas vezes, a impossibilidade de expressar afeto são o padrão de muitas famílias. Há mesmo pessoas que, tendo sido criadas nesse padrão, se orgulham desse comportamento e o valorizam como indicativo de força e caráter, recusando-se a mudar e imaginando que a mudança indicaria uma traição a princípios que devem orientar suas vidas. Mesmo você sabendo o quanto seria gratificante para ele mudar esse modo de pensar e experimentar outras maneiras de ser, vai depender dele. Converse sobre o assunto, tentando demonstrar que essas ideias fazem parte da herança cultural dele e que podem ser modificadas, para que ele tenha uma vida mais prazerosa. Ao mesmo tempo, diga claramente que você sente necessidade de afeto e de ser tocada, e não aceite que isso seja objeto de acusações e condenações injustas. Finalmente, é importante que você saiba que, a permanecer esse descompasso tão grande entre vocês, o relacionamento não é nada promissor, e que, se ele não mudar, você nem deve pensar em casamento, pois, em poucos anos, seria insuportável a convivência – e, sem que você o acuse pela maneira de agir e pensar, é preciso que isso seja comunicado a ele, com todas as letras.


Sofro muito com minhas expectativas românticas. Mal conheço um rapaz e já me imagino namorando. Só depois constato que é atencioso com todas. Apesar de anos de terapia, estou sempre imaginando mais do que realizando, o que faz com que meus desejos se transformem em frustrações. Que homem vai querer uma mulher como eu?
Talvez você se surpreenda com a afirmação de que muitos homens agem exatamente como você, com os mesmos resultados. O que acontece, provavelmente, é que você valoriza excessivamente sua necessidade de ter alguém e centra demasiada energia nisso. O resultado é uma ansiedade muito grande, que interfere nos seus relacionamentos, impedindo que eles tenham seu curso natural. Essa perturbação pode levá-la ora a retrair-se, ora a se entregar sem limites, confundindo o provável futuro parceiro. Procure dirigir sua energia a outros interesses e buscar sua realização pessoal na melhora de outros aspectos de sua vida, buscando conhecer lugares, aperfeiçoar-se profissionalmente, cuidar do seu corpo e de sua saúde, viajar, sem esperar, nessas atividades, encontrar um parceiro, e sim conhecer pessoas com quem possa se identificar, falar de seus sentimentos e trocar experiências que a enriqueçam. Quando você menos esperar, tendo baixado sua ansiedade e harmonizado sua energia, é possível que o moço apareça e você possa agir com mais naturalidade à aproximação dele.

terça-feira, 2 de julho de 2013

TENTATIVA DE FUGA


Naquele tempo, década de 1960, os grandes escritórios de advocacia ficavam na área central da metrópole, em torno dos fóruns e dos tribunais. E aquele era um dos maiores em direito criminal, minha disciplina preferida na faculdade. Sorte ou azar, o titular do escritório, embora muito jovem e já rico com o exercício da advocacia, era filho de um grande amigo do meu padrinho de casamento (e guru, e ídolo, um velho que eu amava), que me recomendou para um estágio no escritório.
Por que decidi advogar? Primeiro porque, recém-casado, mulher grávida, precisava ganhar mais. Segundo, porque estava às turras com os novos chefes da redação e o chefe deles, um cara alto, falastrão, megalômano, mitômano e para cuja fama de ser um dos melhores jornalistas brasileiros nunca vi razão. Na época, dizia-se que para marcar presença, sempre que alguém assumia uma redação, verificava se na diagramação das páginas se usava um fio vertical separando as colunas de texto. Se houvesse o fio, mandava retirar. Se não houvesse, mandava por. Pois o grande jornalista que veio substituir, com o titulo de diretor, o secretário de redação que o patrão demitira, verificou e viu que não havia o fio. Mandou por. Além disso, livrou-se dos bons editores que tínhamos, criou uma profusão de novas chefias e as entregou a amigos trazidos de fora. Vários deles bons professores perseguidos pela direita numa grande universidade pública, mas ser perseguido não faz de ninguém, necessariamente, um bom caráter ou um bom jornalista. E mesmo os que, dentre eles, eram bons caracteres e até bons jornalistas, como provaram mais tarde em outros lugares, ali naquela redação não fizeram rigorosamente nada de significativo. Limitavam-se a ficar separando, por assunto, os telegramas que chegavam das agências internacionais de noticias, dos correspondentes e sucursais, encaminhando-os para os editores, ou a requisitar carros e fotógrafos para os repórteres, ou a checar o cumprimento de horários e enquadrar repórteres e redatores com ordens incompetentes e até absurdas e idiotas, como a de determinar que, quando um repórter soubesse que outro jornal iria publicar a mesma notícia, não deveria sequer trazê-la para a redação. Como eu cobria a área política, o que fazia era trazer a reportagem e dizer, por exemplo: “Olha, o ex-presidente vai ser cassado por causa desta entrevista. A entrevista foi coletiva. Se não quiser, não publique, mas será uma imbecilidade”. Meu novo chefe, um burro sociólogo que mais tarde se revelou um grande picareta, vivendo (bem) de lobbies  desonestos para multinacionais em concorrências e licitações, vivia criando essas preciosidades éticas. Minha paciência se esgotou no dia em que chamou-me a sua mesa e me passou um recorte de um jornaleco do Rio de Janeiro. Esse jornaleco tinha tentado pressionar o prefeito de nossa cidade a lhe conceder uma grande verba publicitária. O prefeito, militar reformado da Aeronáutica, desprezou a pressão, e o jornaleco passou a fazer uma campanha suja contra o prefeito. Inventava “escândalos” e encomendava a seu correspondente em nossa cidade que criasse “fontes” que incrementassem a campanha. O correspondente se divertia com isso, e nós também. Em mesas de bar, contava aos colegas que ia inventar isso e aquilo. Chegou a imaginar um grupo de deputados e vereadores que iriam criar comissões parlamentares contra o prefeito. Tudo cascata, como se diz no jargão jornalístico. Cascatas sucessivas, com águas volumosas, borrachudos e arco-íris. Pois o recorte que ele me passava era justamente o das CPIs inventadas. Quando ele me disse “isso sim, é que é jornalismo”, explodi. Comecei tentando falar baixo: “Isso é pura cascata, e você é um bocó”. Mas quando vi já estava aos berros, e me dirigindo ao chefe dos chefes: “Não trabalho mais com este imbecil aqui!”. Para que eu não criasse mais problemas, passaram-me para o período da manhã, em que acabei até me divertindo com um chefe picareta – mas este era de uma picaretagem inocente, pois, tendo cinco empregos públicos em que não trabalhava, gostava de  receber brindes de empresas, entradas para shows e que tais. Deixava-me fazer o que quisesse. Eu lhe passava frequentes trotes telefônicos, e ele me deixava fazer grandes reportagens especiais, com as quais acabei me destacando e sendo convidado para a grande editora de revistas.
Antes disso, porém, houve a experiência com a advocacia de que comecei a falar linhas atrás.
Grande compositor gaúcho, Lupicínio Rodrigues, pregando o desamor, diz a Esses Moços que quem ama deixa o céu por ser escuro e vai ao inferno em busca de luz. Pois minha tentativa de deixar o jornalismo pela advocacia foi assim. O luxuoso escritório ocupava um andar inteiro na principal avenida dos arredores dos tribunais. E tinha uma bem articulada e azeitada equipe de profissionais fixos e colaboradores eventuais. Os fixos: uma experiente secretária, um conhecido jornalista-advogado (depois vi que o plano do titular era eu ser o segundo), um perito da polícia técnica, um diretor do fórum. Entre os eventuais, havia promotores públicos, professores de direito, médicos famosos, jornalistas, outros policiais,    advogados e quem quer de que ele precisasse para ganhar uma causa, utilizando fraudes inimagináveis. Uma parte do trabalho, admito, me realizava: escrever. Ou reescrever – pois às vezes ele me pedia para refazer trabalho de outros. Eram apelações, ou contestações, ou petições iniciais que, eu soube depois, eram feitas por promotores públicos – isso mesmo, não estranhe. Promotores, e até juízes, que ele pagava, com grandes somas, para colaborarem com o escritório. Claro que isso era ilegal, mas aparentemente mais inocente do que simplesmente oferecer-lhes dinheiro sem nenhuma contrapartida. Só para tê-los no bolso quando lhes caísse nas mãos – ou nas mãos de um colega próximo deles -  um processo do escritório. Vou resumir dois casos que ilustram como funcionava.
Caso um: um industrial mata a tiros seu genro (e sócio, que, alega, o estava roubando) e corre para o escritório. O grande advogado, imediatamente, monta uma história e cria as “provas” dessa história. Primeiro, chama o perito criminal. Este desfere uma série de socos nas virilhas e coxas do industrial. O grande advogado, com o auxilio do jornalista-advogado, escreve um falso depoimento para ser decorado e exaustivamente ensaiado  pelo industrial. O texto, feito para justificar a tese de legítima defesa, faz do assassino uma vítima indefesa, perseguida por um implacável e violento traidor. Primoroso, começava com a comovente frase: “Eu o amava como a um filho...”. Bem  decorado e bem representado, a ponto de o velho industrial derramar lágrimas, o assassino é apresentado à polícia, é feito o exame de corpo de delito – que “comprova” o brutal ataque do genro-sócio, e assim vai-se buscando a justiça – busca que incluiu o depoimento de um conhecido jornalista, contando à Justiça que, dias antes do assassínio, encontrara, vagando pelas ruas, o desesperado industrial, sem saber o que fazer com a trágica situação em que se encontrava, humilhado, traído e perseguido pelo genro que tanto amara e protegera. Triste e arrasado, chorou no ombro do grande amigo, que, segundo o depoimento, há muito não via (na verdade, nunca o vira mais gordo, pois o conheceu no escritório, e lhe pagou uma boa grana). Foram tantas as manobras e falsos testemunhos (um funcionário da indústria chegou a dizer que ouvira uma longa discussão e o som de poderosos pontapés do genro no velho, quando, na verdade, este foi recebido a tiros assim que chegou à fábrica), que o processo foi se arrastando, e o velho acabou morrendo, de velho mesmo, sem ter passado um só dia na prisão e nunca ter ido a júri.
Caso dois: atendendo a um pedido da policia de outro estado, uma equipe de investigadores sai à procura de um bandido que fora visto, dirigindo um carro importado, numa rua próxima à delegacia em que trabalhava. Um dos investigadores vê um carro que poderia ser o do bandido, saca uma arma de cano longo e manda parar. O homem, na verdade um comerciante do bairro, pensa que está sendo assaltado e pisa no acelerador. O policial descarrega o revólver no motorista, que morre no local. Milagrosamente, o policial entrega seu revolver para a perícia – e ele não havia disparado um só tiro. Além disso, seu revolver tem cano curto! A defesa, feita gratuitamente pelo escritório – que não cobrava de policiais nem de jornalistas, pois os primeiros ajudavam a fraudar provas, e os segundos divulgavam ao grande público as versões que interessavam ao grande advogado – incluiu a destruição dos testemunhos de que o policial dera os tiros, através de outras testemunhas, que garantiram que ele nem tocara em sua arma, de resto de cano curto, e mais um oftalmologista, que examinou as testemunhas de acusação e provou que todas tinham problemas de visão, sendo impossível que pudessem perceber quem realmente atirou. Uma história em quadrinhos, projetada para o júri, mostrou também que, na posição geográfica em que se encontrava, o policial não poderia ter dado os tiros que mataram o comerciante. O crime ficou sem solução, pois nunca foi possível descobrir de onde os tiros tinham saído. A defesa só não foi ainda mais magistral porque não se encontrou nenhum marido disposto a confessar o crime e, bem remunerado, ir para a prisão, acusando o morto de ter comido sua mulher.
Apresentado certa tarde, no fórum criminal, a um grande criminologista, este, ao saber com quem eu estava trabalhando, fez cara de nojo e me disse: “Esse escritório é horroroso. Frauda demais”, “Há um grau de fraude”, ele acrescentou, “que todo advogado às vezes pratica, ainda que seja para compensar as fraudes da outra parte. Mas para esse nosso colega não há fronteiras!”.
Não havia mesmo. Comecei a suar frio cada vez que acompanhava um cliente a uma audiência ou à policia, ou participava de um júri.
À noite, os pesadelos se sucediam. Neles eu era preso e torturado. Acordava chorando, apavorado. Minha filha já tinha nascido e eu não queria que o pai dela fosse aquele que eu teria de ser. Saí enquanto a sujeira ainda podia sair no banho.
Com ímpeto adolescente, voltei a amar o jornalismo, e, feliz, a me concentrar nele. Um ano depois, eu já chefe de reportagem da revista de automobilismo, o grande advogado me ligou. Precisava do meu texto e do meu talento, disse. Me ofereceu sociedade – uma razoável participação em todas as causas do escritório. Coisa para ficar rico – e morrer de angústia – em poucos anos. Com cuidadosa delicadeza e um grande alívio, recusei.
Se sou mesmo honesto ou medroso, até hoje não sei. Mas sei que tenho muita saúde, mesmo depois de ter levado um tiro, bala perdida de fuzil, numa cidade maravilhosa.